[Manu e Lígia] Verdades que magoam – Parte 21

FACHADA DA ACADEMIA | Sexta-feira | 19h10

Lígia: Tudo o que o Manu me contou é verdade?

Maurício: O que esse descarado te falou? (entonação)Não deve confiar nele, Lígia.

Manu: Eu só estou dizendo a verdade. Qual é o nome da mãe do Jorge mesmo?

Maurício: (entonação) Quem é você pra perguntar esse tipo de coisa?

Manu: Certeza que não é Suzan. Deve ser o nome da sua amante.

Lígia: É verdade que você tem um caso com o Jorge?

Manu: Aliás, é Suzan o codinome desse seu amiguinho, não?

Lígia: Não acredito que fui trocada por um homem… (suspiro)

Manu: Lígia, não fale assim. (entonação) Ninguém seria capaz de te trocar. Você não é descartável.

Maurício: Fala até como se fosse hetero.

Lígia: Por um acaso o Manu também é gay?

Maurício: Pra ser sincero, eu sou é bissexual. Ao contrário do Manu, que sempre gostou de ser passivo.

Manu: Pra sua informação, estou saindo com uma garota durante essa semana.

Maurício: (entonação) Sua mãe? Me poupe dessas suas neuras, Manu.

Manu: Por que você não abre o jogo e sai do armário?

Maurício: (tom baixo) Já começou com essas histerias típicas. Pronto, está com o foco de luz!

Manu: Você tem que ser tão discreto pra proteger o amado? Até muda o nome no celular.

Maurício: (tom baixo) É por conta desses ciúmes que te larguei. (entonação) Ninguém vai te aguentar, cara. Se enxerga!

Lígia: Calma, quer dizer que vocês já foram namorados?

Manu: Não precisa me lembrar disso. Perdemos a virgindade juntos.

Maurício: Tem mesmo que espalhar nossa intimidade a qualquer pessoa?

Manu: A Lígia não é qualquer uma! Tem que ver o quanto ela se dedicava pela ficada barata entre vocês.

Maurício: Ficada barata foi a nossa. (entonação) Passa-se o tempo e você ainda pensa que um dia voltaremos.

Manu: Cruz-credo! Quero mais é que você suma da minha vida. (pausa) Mas tem que parar de fazer burrada. Por que brincar com os sentimentos da garota? (entonação) Quem você pensa que é?

Lígia: Então, Maurício, (pausa) você nunca sentiu nada por mim?

Maurício: Não é bem assim, Lígia. Deixa eu te explicar. Na verdade, é impossível não se desconcertar com seu jeitinho, mas…

Manu: É que pra ele, não rola. Ele joga do mesmo time que você.

Maurício: Para de ser mané. Nesse assunto, estamos nós dois na mesma barca! (entonação) Lígia, me desculpa. Sou gay. Antes eu tinha me envolvido com o Manu.

Manu: Depois ele começou a receber muitas mensagens dessa tal de Suzan. Desconfiei e logo após ele já estava se envolvendo com outra pessoa. Só decidi abrir o jogo pra que ele não tem magoasse com mentiras, Lígia.

Lígia: Também estou magoada com verdades. Tenho que tomar um pouco de ar…

Maurício: A pressão dela caiu. (pausa) Me ajuda a levantar, (entonação) vem logo.

Manu: Por que não vai atrás do seu namorado? (pausa) Falei brincando, vai deixar mesmo ela estirada aqui? (pausa) Vou ter que dar um jeito nisso. (entonação) Vamos, Lígia, acorde! Vamos, acorde!

[Manu e Lígia] Conhecendo quem acompanha o brutamonte – Parte 20

Manu beijou a bochecha corada de Lígia. Demorou instantes para que Manu soubesse o que diferenciava a quase loira naquele final de tarde. Sem fita nos cabelos, ela podia ser confundida com qualquer pessoa na rua. O franzino fez careta quando a recepcionou no hall principal do prédio.

Ela não tinha a mínima noção para onde Manu a conduziria. Quis evitar perguntar sobre a ficante, já que temia uma resposta positiva. O rapaz também não se sentiria bem em perguntar o motivo dela estar sem fita, deduzia que aquilo era fruto da discussão com Michele. E ele tinha razão.

O dia todo de Lígia foi marcado por infortúnios. Esqueceu de entregar o trabalho de literatura. A biografia de Guimarães Rosa ocupou o canto do sofá, praticamente colada com a sua interpretação sobre os contos semi-míticos do escritor. Até explicar que tinha o trabalho concluído, mas em casa, renderia uns dois pontos no mínimo.

Na aula seguinte, a de História, o professor decidiu aplicar prova surpresa. Seria em dupla, mas não adiantaria muito para Lígia, pois sua parceira tinha se ausentado nas aulas durante as últimas duas semanas. Restou apenas confiar na sorte e rezar para que o professor aceitasse as respostas dúbias – considerou que ele é bastante rigoroso em avaliações.

Adormecendo depois do almoço, a quase loira perdeu o horário da entrevista par ao estágio de auxiliar de escritório. Inflamada, jogou o despertador em forma de lua crescente no chão. Além de quebrar a porcelana que envolvia o objeto, não tinha condições de regressar no tempo. Enfim, podia classificar que a sexta-feira não era definitivamente o seu dia.

Antes das sete da noite, encontrava-se sentada na mureta d academia. Talvez romper o romance com Maurício fosse a única boa notícia que teria nas últimas vinte e quatro horas. Dava para ver o esboço fumaceado do brutamonte pela janela. Certeza que a fisionomia raquítica do seu lado pertencia a Jorge, porque não pensaria em outro amigo de Maurício como sugestão.

Dessa vez, Maurício não se sentia vigiado. Tinha mandado um SMS para sua ficante avisando que sairia com os amigos à noite. Imaginando que ele encontraria com a tal Suzan, a quase loira nem resistiu quando Manu a convidou para bisbilhotar a saída de Maurício da academia. O franzino afirmou que a amante do brutamonte já se encontrava no lugar. Lígia não conseguia observar mais pessoas na sala que antecipava a saída dos clientes.

Por não estar usando óculos, ela não decifrava se aquele vulto era a sombra de Jorge refletida na parede ou se era a tal da Suzan. O que estava claro naquela cena era que o amigo de Maurício também era cúmplice da traição. Podia ser que eles já tramassem juntos como traçariam outras jovens durante a madrugada, enquanto Lígia era feita de tola. Pra piorar a angústia da jovem, um pombo passou de raspão pelo ombro dela. Lígia odiava pombos.

Repentinamente a jovem percebeu que, durante os cinco dias, Maurício não se mostrou muito apaixonado por ela. Exceto seus beijos de tirar o fôlego, aparentava estar indiferente à sua presença quando saíram juntos. E sendo justamente no primeiro momento de relação que ambas partes de uma relação se mostram ofegantes de tanta paixão, ficou claro para Lígia que o rolo estava fadado ao fim.

Manu voltou-se à quase loira e pediu desculpa por revelar a verdade sobre Maurício. A jovem compreendeu que perderia toda a admiração pelo brutamonte e falou que queria saber a verdade. Ele pegou o celular do bolso. O jeans agarrado na perna dificultava. Discou o número de Suzan e a tela do aparelho estava de frente para Lígia. No mesmo instante, o celular de Jorge recebia uma chamada.

– Alô, Suzan? Pode dizer ao Maurício que a namoradinha dele já descobriu tudo – o franzino encerrou a ligação, Jorge encarou o brutamonte e esse fitou Lígia, pasma. O pombo de novo sobrevoou rápido pela jovem.

Maurício enxugou o suor da testa com sua típica toalha verde felpuda, gesticulou para que Jorge não interferisse na conversa e saiu em disparada em frente à mureta da academia. Até chegar ao ambiente, Manu explicara que tal amante de Maurício, na verdade, tratava-se de Jorge. No primeiro diálogo, Manu teria inventado que ela fosse mãe, queria apenas ilustrar a infidelidade. Na praia, a mãe dele que tinha atendido a ligação de Lígia. O quebra-cabeça se encaixou perfeitamente para a quase loira.

[Manu e Lígia] Com tatuagens na casa – Parte 19

A agulha pintava cada pedaço do ombro nu de Carol. Foi do lado direito que ela optou em sentir a dor de ver as rosas marcadas. O problema é que não tinha caído todo o salário dela até a sexta-feira, portanto, foi obrigada a fazer a tatuagem apenas com cores neutras. Demorou muito tempo para que conseguisse virar o rosto ao espelho e afrontar-se com a obra que cobria um pouco de seu corpo.

Exatamente como pensava, só que sem o vermelho sangue e o verde forte tingindo o desenho. Exceto a ausência do ar colorido, a tatuagem correspondia com as expectativas de Carol. Balançou as mãos como sinais de entusiasmo. O tatuador coçou o umbigo peludo. Vários pôsteres de bandas de rock preenchiam três das quatro paredes do pequeno cômodo das tatuagens.

De Axl Rose a Dexter Rolland estavam presentes nos cantos da tal sala. Claro que a preferência era pra imagens oriundas das capas de CD de heavy metal. A banda Metallica estampava a camisa preta do tatuador barrigudo. Tirou o dedo do umbigo, cheirou e fez cara de nojo. Não aparentava estar em sã consciência, porém, fez um ótimo trabalho como desenhista de costas naquela tarde.

A morena ajeitou a camisa regata azul-marinha. Já estava deixando uma das alças do sutiã a mostra e não tinha interesse algum em flertar com o estranho tatuador. Passa longe que Carol tivesse os seios fartos. É que praticamente todos os homens se excitam com qualquer jogada de pernas femininas. E a secretária não descartava a ideia de fazer um implante de silicone ou uma lipoaspiração alguns anos depois. Além de estar descontente com as medidas do busto e com o seu peso, entendia que participar de sessões amigáveis com o bisturi é moda brasileira.

Que bom que ele também ajeitara a regata. Carol sacou a carteira e entregou cinqüenta reais. Um preço amigável ao desenho preto-e-branco bem menor do que a palma da mão. Bem, foi isolada a região tatuada por um plástico. Assim, o trabalho estava encerrado e a morena podia sair tranquilamente da sala a la hardcore.

Em questão de metros, Carol demonstrou-se inconformada. Um aperto no peito que alertava o que sua mãe faria quando descobrisse sobre sua desobediência. A sensação de arrependimento não superava mais a ação física e certeira do tatuador. Tarde demais para reverter a situação, Carol estaria condenada a esconder esse segredo de dona Aurora. Pegou um ônibus em direção à Avenida Ana Néri.

Carol se esqueceu da jaqueta de jeans branco que se encontra em torno de sua cintura larga. Vale lembrar que apenas se sua estatura baixa, a jaqueta não se sujava pela calçada. De repente, o tecido tomava conta da pele jambo da secretária. A jovem suspirou aliviada, pois vestira a jaqueta um minuto antes da dona Lourdes subir na pequena leva de degraus do ônibus.

Acenou brevemente e lançaram sorrisos com a mesma agilidade. Carol refletiu que até não haveria problemas se dona Lourdes achasse a tatuagem em seu corpo. Há anos que a vizinha se desentendia com dona Aurora. A disputa pela melhor dona-de-casa desafiava as duas a desperdiçarem seu tempo varrendo e limpando o lar inteiro sem precisão.

Ao contrário do que pensam muitas crianças que se divertem tacando pedras em quintais alheios, a dona Lourdes é transparente, angelical. Não a ponto de colocar notas grandes na caixinha do altar. Mas tinha desempenhado o papel de catequista por uma década em sua comunidade paroquial. Ela se comportou de forma tão amável no coletivo que Carol se compadeceu da bondade da vizinha.

Desviou o olhar em segundos. Na verdade, deixou-se levar pela aproximação de um homem de meia-idade, que veio acompanhá-la durante a viagem. Cavanhaque mal feito, meio que barba rala e um nariz saliente – aliás, apontando para o busto de Carol. Ela logo percebeu a avaliação pretensiosa do homem feito.

Tentou puxar conversa, pediu informações. Mexeu na gola alva da camisa de botões. A morena também abotoava a jaqueta para evitar uma insinuação do passageiro. Bastante reservada, falava secamente sobre o endereço desejado por ele. Claro que o homem não desistia de dar em cima da jovem e soltou um comentário sobre a roupa do cobrador de ônibus. Carol segurou o riso e a ironia foi a abertura necessária para que os dois tivessem um bom diálogo durante toda a viagem.

O ônibus parou poucas vezes até Carol descer do veículo e caminhar em direção à sua casa. Até lá, já tinha se apresentado ao amigo informal. Ao ouvir o nome dele, Carlos Eduardo, parecia soar familiar. No fim, acreditou que devia estar fazendo alguma confusão.

Foi coincidência demais o seu deslize em deixar cair o celular no vão dos assentos do coletivo. Sem notar que abandonara o aparelho telefônico, a morena tatuada continuou sua jornada rumo a casa. Na despedida, inclinou a cabeça e cumprimentou com um singelo sorriso.

Carlos Eduardo se descuidou com a pequena, já que Carol estava desinteressada em passar o número de seu celular. Cabisbaixo, a malícia lhe ocupou a mente quando achou o aparelho da secretária no chão. Um ótimo pretexto para marcar um futuro reencontro.

[Manu e Lígia] Atrasados para a prova – Parte 18

Mais uma vez Paulinho divagava conceitos biológicos no intervalo. Repetia em tom baixo o “farecofage” par ajudar Luane a decorar a hierárquica classificação dos seres não prestava atenção em uma palavra sequer do menino. Não que ela não quisesse, mas é porque ela se concentrava em admirar a sagacidade do adolescente.

Paulo era bom com as palavras, apesar de não ter o melhor visual da sala. Enquanto arrumava várias vezes a armação dos óculos, Paulo se esforçava em argumentos para que Luane tirasse uma boa nota na prova que ocorreria em menos de dez minutos. A garota começou a decorar a fórmula mágica da classificação dos seres. É, funcionou.

Em pouco tempo, o Fábio, do nono ano, já ia mexer com Luane. O uniforme sem mangas a tornava mais sensual para os seus colegas. A cor branca com o bordado azul realçava seu corpo que mudara tão de repente. O garoto levava um pão de queijo a ela. Um flerte tão fora do convencional que quase beirava o ridículo. A Duda e o grupo de amigos de Fábio riam da situação. Porém, Luane estava com tanta fome que não tinha como recusar a oferta.

Disse que não. A resposta um tanto desrespeitosa de sua parte assustou o garoto. Fez uma piada, soltou algumas frases engraçadas, mas o constrangimento era exteriorizada pelas suas pernas bambas. Logo foi embora, voltou à roda de amigos do nono ano do outro lado do refeitório. Mechas caíram cobrindo os olhos de Luane, Paulo aprontou-se e delicadamente tentou salvar o penteado.

A troca de olhares entre os colegas de classe ganhou uma conotação romântica. Era impossível que, naquele momento, o desajeitado Paulo não previsse a queda que Luane tinha por ele. E seu rosto se avermelhou de forma tão espontânea que dava para perceber que Paulo também nutria uma paixão secreta.

Foi bem antes dela usar o primeiro sutiã que Paulo reparara na beleza de Luane. A personalidade forte o temperamento explosivo em debates nas aulas de interpretação de texto. Essa maneira única de se comportar na sala era o que fazia com que o garoto tivesse uma predileção a ela.

Teve até uma ocasião em que a garota fazia questão de confrontar o nerd. No mês de agosto, ainda no sexto ano, Luane detectou um erro imperceptível nos exercícios matemáticos do colega. Por mostrar o erro, gerou uma fixa que, consecutivamente, despertara a paixão no coração de Paulo.

Ele já se descobrira apaixonado por ela quando Luane se abalou afetivamente. Depois de meses alimentando o conflito com o nerd, foi surpreendida com o som do telefone em pleno domingo. Paulo ligava para lhe desejar feliz aniversário. Em sinal de respeito, convidou-o para sua festa à tarde. Churrascada para amigos íntimos. Paulo agradeceu a proposta e foi à festa. Tornou-se protagonista do local através de seu bom humor e na maneira que satirizava Deus e o mundo em seus comentários.

O vínculo se reverteu, nasceu uma amizade e uma reciprocidade tão grande que lhe fizeram eternos confidentes. O relacionamento causou algumas histórias ciumentas, só que Paulo confiava em Luane e vice-e-versa.

Todas as terças e quintas-feiras, quando Lígia ia à Companhia de Dança Inácia Lemont, Luane aproveitava para navegar na Internet e ocupar o seu quarto. Entre as redes sociais, o lastfm e o blogspot de contos amadores, a noite era repleta de mensagens trocadas com o nerd. Sentia um prazer incomum em doar sua ternura ao adolescente.

Com o tempo, ressaltaram outras características em Luane, que – acompanhada por experiências particulares – tornaram seu gênio mais manso, pacato. Como síndrome de Pollyana, tentava observar o mundo através de figuras líricas, poéticas e positivas. Colorindo os quadros de seu dia-a-dia, foi tranquilamente que se flagrou apaixonada pelo nerd. Mas Paulinho era tão sociável com todos da sala que, dificilmente, daria para desconfiar se aquele sentimento era mútuo.

Paulo bancava o bom moço, o bom estudante e o bom filho. Seus pais não lhe pressionavam, realmente se tratava de algo instintivo. Isso fez com que ele sempre medisse as conseqüências de seus atos, que calculasse cada atitude e se colocasse sem êxito no lugar do próximo. Era assim uma interpretação distorcida. Barrar sua espontaneidade o fez solidário, entretanto, perdeu o aspecto sensorial, humano.

Sem atravessar por fortes vivências, Paulo descartava muitos fatos importantes para a vida das pessoas ao redor. Talvez a partir daquele dia, consideraria mais os sentimentos alheios e aprenderia a compreendê-los. Mas dois minutos após o sinal do fim do intervalo, Paulo apenas pensava em como prolongar seus primeiros beijos com Luane.

[Manu e Lígia] Rivalidade mais que previsível – Parte 17

Inácia assistiu o ensaio da companhia aflita. A Secretaria Municipal de Cultural divulgou as datas dos festivais de dança. Comparada com a edição anterior, a nova versão do festival VivArte ocorreria com vinte dias de antecedência. A verdade é que a coreografia ainda não era das melhores, tinha muitos erros dos dançarinos em seguir o compasso. E faltava destacar Manu do restante od elenco, composto por unanimidade feminina.

Inscritos para o evento, a única certeza da professora Inácia é que a apresentação seria dentro de um mês e, com tamanha urgência, o modo mais viável de realizar um bom trabalho seria marcar o calendário com ensaios extras. Contudo, era tão aparentemente sofrível a apresentação que a professora até cogitava em assumir uma outra obra. Enquanto dançava na sala de espelhos, Inácia dava passos rápidos em direção ao seu escritório.

Na terceira ou quarta gaveta do armário de alumínio tinha uma pasta amarelada. Mexeu no elástico duas vezes e seu olhar invadiu as folhas. Percorrendo as páginas com a mão direita, Inácia se encurvava sobre a mesa. Papéis grampeados e enumerados de um a doze. Do agito à alegria. Os saltos finos ressoavam por toda sala de espelhos.

– Esqueçam essa coreografia. Vocês farão um musical!

– Professora, mas musicais são longos e difíceis. Além de que vamos precisar aprender teatro. Por que não garantimos a apresentação que já estamos ensaiando? – resmungou Mih, a única dançarina a decorar as quatro partes da coreografia.

– Confio no potencial de vocês. Na verdade é um pot-pourri em torno de vinte minutos. É uma versão sobre a Cinderela. Mais ágil e menos formal. Na trama, Manu sobrou para o papel de príncipe encantado. E tem um triângulo amoroso, estilo clássico, formado pelo nosso garotão, pela Cinderela e pela filha da madrasta. Nesse musical, nomeei-a como Elizabeth. Gosto desse nome – declara a professora pensando em quem poderia interpretar os futuros personagens.

A tensão provocada pela escolha de um novo texto musical contagiou os quinze dançarinos. Inácia deu o papel de Cinderela a Michele, e Lígia ganhou a chance de interpretar a filha da madrasta. Outros personagens secundários foram distribuídos pelo elenco. A oriental soltou os cabelos compridos e involuntariamente abraçou Manu, atordoado mais uma vez ao participar de situações embaraçosas.

Lígia pareceu alterada diante do momento afetivo. Quando Manu percebeu que a quase loira se enciumou com a ação de Michele, aí que fechou os olhos esbanjando satisfação. Não percebia que estava comprometendo uma amizade através de sua face desafiadora. A provocação enraiveceu a quase loira, ela se sentiu no direito de reclamar o carinho da amiga. Era a primeira vez que o rapaz via tal ataque de nervos.

A crise de Lígia afetou o clima do ensaio. Inácia notou que a sua melhor dançarina ficou desorientada com o ataque. O spot de luz era lançado direto para o rosto de Mih ao ser enfrentada. Não importava se Manu tinha algum vínculo amoroso com Lígia, ela não tinha motivo para parar o abraço apertado de Michele por conta de um ciuminho. Ela gritou dizendo que Manu estava comprometido. Depois falou para Michelle parar de dar em cima do rapaz, porque ela não teria chances para um eventual relacionamento.

A professora se segurou para não parar o conflito, contudo, deduziu que Lígia e Michele estavam bem crescidinhas para resolverem suas brigas. Da mesma forma, seu senso artístico a inspirou: o bate-boca ajudaria na construção das personagens, já que as duas seriam rivais no musical.

Michele não ficou por menos, o desentendimento prosseguiu ao humilhar a colega dançarina: o nariz de batata, a falsa cintura magra e a fita sobre os cabelos foram as principais causas de chacota da oriental estonteante. Manu percebeu que tinha sido responsável por toda aquela rixa. Obrigado a interferir na conversa mal-educada, pediu a palavra. As colegas consentiram.

– Você ainda não descobriu que você é quem curto mais daqui? – ele sussurrou diante de Lígia – Ah, está linda. Como sempre.

Entendendo que o franzino realmente estava comprometido, Michele bateu a porta da sala de espelhos para se refrescar. Ele abraçou calorosamente Lígia que, sentindo-se protegida, confidenciava nos olhos que estava apaixonada.

– Não me olhe assim, parece o gatinho do Shrek. Primeiro, preciso que você me acompanhe num passeio amanhã às seis e meia, okay? E não esqueça que estou com a Carol – Manu beijou a bochecha corada de Lígia.

[Manu e Lígia] Sem tatuagens na casa – Parte 16

Analisou cada pedaço do desenho. Não continha sua alegria ao ver o papel timbrado com o par de rosas. Por pouco não abriu a porta do armário para ver com quais roupas a futura tatuagem poderia combinar. A pele nem estava oleosa como de costume. Quando a pele de Carol se mostrasse ressecada, significava que era estava com bom humor no dia.

Em meio ao quarto roxo, a jovem secretária se deslumbrava com o desenho. Logo dona Aurora observava a filha pela fechadura no trinco. Desde que deixara de lado o Bruno, Carol não se encontrava tão extasiada. Assim, havia um grande receio da mãe de saber que a morena tivesse reatado com um traficante de drogas. Sábia, conhecia os perigos que a outra podia se meter.

Melhor conferir a felicidade de Carol mais de perto. A filha apontou para a gravura florida. A mãe deu com os ombros, fingiu de desentendida. As pontas dos cabelos de Carol já tocavam o desenho semi-colado de suor no ombro. Aurora prosseguiu o diálogo como uma leiga sobre o que se passava no local. A morena foi direta em confessar a vontade de fazer a tatuagem.

– Filha minha não faz tatuagem! E ponto final. – Dona Aurora já atravessava o corredor da casa cheia de lamúrias – Onde é que já se viu uma coisa dessas? Não tem nem condições de se sustentar, e está pensando em se camuflar de bandidinha por aí. Quero só ver se a dona Ângela não te demitiria se soubesse que você é tatuada. Até eu não te consideraria como filha…

Não seria a primeira vez que a morena ficaria pasma com as declarações maternas. Contudo, não esperou tamanha frieza e nem querer ouvir os possíveis bons argumentos da filha. Talvez porque dona Aurora fosse realmente bem tradicionalista e se recusasse a ver a filha marcada eternamente com uns rabiscos, mesmo que representasse uma coisa extraordinária em sua vida.

O preconceito também ganhava forma por causa do primeiro namorado de Carol. Por ele ter se envolvido com o narcotráfico, era normal que a ela imaginasse que a secretária também estivesse inserida no grupinho que compartilha a fumaça de baseados. Havia até um resquício de angústia quando a filha saía à noite, era tomada pelo pressentimento ruim da violência banalizada por traficantes e bandidos. A tevê sempre transmitia informações sobre isso, provavelmente, a insegurança só acrescentava quando Aurora estava solitária em casa.

No dia anterior, ao acompanhar o noticiário do Datena, logo identificou um ladrãozinho como um ex-colega da classe de Carol. Ela tinha certeza absoluta que fosse alguém do bando da maconha que tivesse convencido a morena a entrar no grupo e, para isso, fazer uma maldita tatuagem. Sinalizar o corpo desse jeito ou era símbolo de fraqueza, ou de promiscuidade, segundo dona Aurora.

Para a morena isso já tinha outra conotação. Mais do que se incluir em algum grupo, era pra se sentir valorizada e fazer em seu corpo algo que lhe estimulasse a viver. Pensando bem, tratava-se de uma fraqueza que só seria preenchida com a auto-estima das duas rosas em si. Embora já não necessitasse mais disso, pois tinha o homem dos seus sonhos bem junto dela.

Voltou a pensar em Manu, tê-lo por perto valia mais a pena do que realizar uma tatuagem que só traria conflitos no seu lar doce lar. Aliás, ela preferiu mudar novamente seu pensamento. De alguma forma, lá no ensaio da companhia de dança, Manu devia dividir o tablado com a tal da Lígia. E certamente que ele tinha uma certa queda por ela. Carol reparou bem na troca de olhares da dupla na noite do cinema.

[Manu e Lígia] Consolos Desastrosos – Parte 15

As vitrines não apresentavam roupas tão atraentes assim. Uma manga de fora, algo que lembrava a selva amazônica, noutro manequim um vestido curtíssimo para baladas. Enfim, Ângela quase piscava para as inanimadas bonecas da loja. Do outro lado do vidro, aceno. Era Magda, senhora loira sem as raízes devidamente tingidas e um coque segurando boa parte das madeixas. O salto alto branco mostrava sua destreza em limpar as manchas das lambidas de seu cachorro em seus calçados.

Aquele pastor alemão se divertia diariamente com qualquer peça do vestuário de Magda. Tinha dois anos, não era um problema tão grave para a loira lidar. Ângela demonstrava mais desespero. Quando a amiga lhe estendeu os braços, pediu colo e o abraço apertado era forte carinho que ela não recebia há anos da dona da loja.

Enquanto isso, uma vendedora dava moedas e uma embalagem simples à alta jovem acompanhada de uma adolescente, aparentemente de treze anos. A quase loira guardou o troco no bolso de sua calça jeans, chamou a irmã menor e saiu do estabelecimento com uma cópia idêntica ao vestido curto da vitrine. Lígia atravessou a porta automática de mãos dadas com Luane.

Luane adquiria o mesmo porte da irmã, mas estava encurvada por ainda não se entender com o peso dos seios e do sutiã. Eles cresceram de forma rápida, todo seu corpo recebeu uma bela dose de hormônios nos últimos seis meses. As colegas de classe nem pensavam que a vareta da sala fosse ficar tão esbelta e chamar tanta atenção dos garotos.

Sim, os cabelos são mais escuros do que os de Lígia, contudo, Luane faz até mais sucesso do que a irmã. O nariz não é tão afinado, portanto, não destoa do rosto circular, característico da família. O Marcelo e o Fábio do nono ano já repararam nas curvas que começaram a aparecer em Luane. Ela aproveita da boa fase, já que conseguiu preparar um book numa amadora agência de modelos. Participou de um desfile, por sinal.

Por sua vez, no dia-a-dia, ainda se esqueceu de endireitar a coluna ao caminhar por aí.  Era com esse jeito meio desengonçado que ela tentava ludibriar seu medo de fracassar diante de um primeiro beijo. É sempre estranho as novas experimentações de nossa vida, Luane sentia esse medo indecifrável lhe percorrer a espinha, fazer as mãos suar e desviar o olhar para várias direções.

Na verdade, as mãos suavam quando ela conseguia chegar cedo à escola e sentar do lado do Paulo. De óculos de grau, cabelos arrepiados e pálido como um vampiro tradicional do norte europeu, Paulo podia ser considerado como uma preferência exótica de Luane. A inteligência dele era o que atraía Luane, também o jeito que ele desenrolava as conversas com os colegas, de forma tão despreocupada e excêntrica que dava margem a uma rebeldia poética.

Paulo também tinha outras fãs, só que não eram da mesma classe. Bem mais novas. O garoto pálido, tipo Robert Pattinson intelectualizado, jamais tocara em lábios de uma garota. Nem esperava que sua melhor amiga, entediada de diversos convites para sair nos finais de semana, fosse quem mais notasse sua presença. E ausência, já que ele vivia faltando em aulas que ele denominava como desnecessárias à sua vida acadêmica. Paulo ainda gostava de videogames, de rever o antigo Dragon Ball Z e torcer pelo Corinthians no Brasileirão.

O menino crescido era o pupilo de Luane que, por timidez, não sabia como flertar sua primeira paixão. Foi impossível que ela não confessasse o assunto à irmã mais velha. Lígia não tinha o antídoto para curar o medo da irmã. Tentou dar umas dicas, mas mostrou-se mais preocupada com a alça rasgar a sacola do vestido do que argumentar sobre a arte da conquista.

É que Lígia também desconhecia uma fórmula para seu quociente emocional. Já não sentia aquele frio na barriga ao se aproximar de Maurício, o que ocorria justamente quando ela estava dividindo olhares com Manu. Ao mesmo tempo em que os dois são confidentes e que há a hipótese do brutamonte estar com outra pessoa. Aliás, a quase loira por vezes desejava que Maurício tivesse uma amante, para que ela já pudesse conquistar o franzino.

A dançarina se embaralhava num suposto triângulo amoroso. Reparava em Manu nos ensaios e ele ainda tinha um certo ar misterioso. Mostrava-se tão receptivo e até a desafiava com provocações, mas, por vezes, encontrava-se ao lado de Michelle e, é bem provável, que matinha um romance com a secretária. Manu era outro exótico, tão quanto Paulo. Os garotos do nono ano e o Maurício que deveriam ser os pretendentes das irmãs. Mas as duas se encontravam estáticas justamente ao avistar os outros.

Portanto, sem muitos conselhos a dar à irmã mais nova, Lígia foi obrigada a mudar logo de assunto. A única lição que Luane aprendia era que relações amorosas são costumeiramente atreladas a confusões. Seria precipitada da parte dela querer um envolvimento com Paulo, até pela amizade que podia ser desfeita numa eventual desventura romântica. Luane perdeu um pouco mais da coragem ao abrir seu coração para a irmã.

Já na fachada da loja de roupas, Magda tentava reconquistar a auto-estima de Ângela. Dureza vencer a solidão nos últimos dias. Recebeu dois abraços apertados, um de saudade, outro de consolo. O máximo foi uma compra do casaco que combinava com seu tailleur vermelho.

[Manu e Lígia] Imagem mais procurada na Internet – Parte 14

A secretária se desentendia com o computador enquanto o provedor não o fizesse online. Internet banda larga é sinônima de velocidade, não de eficiência. Naquela quinta-feira, a lentidão do computador em afirmar que não acessava a Internet. Queixosa com a situação, Carol balançava a não desenfreadamente. Apertou algumas teclas, foi agressiva com o mouse, embora tenha fracassado em uma nova tentativa de conexão.

Avistou o letreiro para se certificar de estar no caminho certo. Com a alça erguida pelo ombro, a mala tendia a cair junto de outras tantas papeladas. Manu tocou e girou a maçaneta estilo imperial, folheada de ouro. O breve atraso de oito minutos não costuma ser notado pela tia.

Carol abandona a ansiedade por instantes, a palpitação do coração se referia ao rapaz que atravessava a sala com aquele andar tão característico. Usava uma corrente de prata que logo foi puxada por Carol. Encoleirado, o estagiário é que se desfrutava com a ousadia da parceira.

O beijo bastante espontâneo foi a forma receptiva de Carol para demonstrar saudade pelo franzino. Realmente ele era seu astro predileto, parou de beijá-lo e o contemplou atordoada. Manu sorriu desajeitado, cariciou seu rosto e foi à sala particular.

Enfim, o press kit estava feito. Manu aproveitava a mesa do computador para pôr as folhas em ordem de prioridade. Espiou pelas persianas e Carol vivia sua fase extrovertida. Simpática com Ângela, essa também se reanimou ao entrar na sala de espera. A morena estava radiante.

Daí que Manu começou a perceber que aquelas brincadeiras, insinuações que ele tratava com tanto descaso eram valorizadas por Carol. Todas suas provocações nos últimos três meses em direção à secretária despertaram uma admiração profunda. Uma paixão. Contudo, ele não conseguia correspondê-la da mesma maneira.

Soava gratidão, suava angústia. Manu construiu uma trava em sua jornada amorosa. Ainda tinha um apreço muito forte com a última pessoa com quem compartilhou uma reação. O jeito independente combinava com sua visão poética, sensível. Mas como qualquer relacionamento juvenil: findou.

Foram dois anos e meio de namoro escondido. Os pais do casal não suportariam imaginar que os dois estariam juntos. Por questão moral, nem tentavam anunciar o enlace amoroso. Somente o grupo de amigos mais próximos de Manu conhecia os passos do casal. O franzino se esforçava, não teve êxito.

A falta de coragem de assumirem o namoro foi o principal dilema. Inúmeros conflitos surgiram com o mesmo alto potencial bélico. Preferências em comum, atividades prazerosas e outras singelezas expressam o afeto. Nada sobrou depois da separação.

No fundo, o estagiário admitia ser o possessivo e, em certas circunstâncias, ciumento. O que mais dói em Manu é que a outra pessoa se envolver rápido com alguém. Ele se sentiu descartável com tal cena e até desconfiou de já não ter sido traído, justamente com alguém que ele dividiu toda sua intimidade. Foi durante esse romance, por exemplo, que ele perdeu o lado ingênuo e também sua virgindade.

A primeira vez foi mágica, as futuras se tornaram excitantes. Ter que ir à farmácia comprar preservativo e fazer sexo em lugares alternativos e inóspitos para evitar flagrantes era, de certa forma, pura adrenalina. Apimentada pelas transas, a relação se tornou mais sadia aos dois. Os conflitos rotineiros eram resolvidos na privacidade. Ambos se divertiam e relaxavam com o ato sexual. Transformavam a tensão em terapia.

Carol se mantinha casta. Da natureza dela ser uma pessoa que relevasse a sexualidade num entrosamento apenas a dois. Uma lição traumática depois de simpatizar com o Bruno. Ele quase conseguiu levá-la à cama em uma meia dúzia de oportunidades. Metade delas foi recusada, a outra parte rendeu o sexo oral. Quando ela praticava, a experiência foi traumática. Bruno era agressivo, grosseiro e não tinha higiene genital.

Logo Carol se enjoava com a temática sexual. A única vivência com que ela se interessava era com Manu. Fantasias e ilusões dançantes ocupavam a sua mente durante a manhã. Contentava-se ao ver o relógio anunciando o meio-dia. Ângela saía do escritório com o celular colado na orelha.

A morena se ergueu, novamente deu uma ajeitada nos cabelos e acenou para Manu. O jovem pediu cinco minutos com as mãos. Carol voltou-se ao computador e sem fé conectou-se à Internet. Só precisou entrar no Google Imagens e buscar um par de rosas. nenhuma arte combinava com o seu gosto, isso quando o buscador não disparava fotos do Murilo Rosa nas primeiras páginas da pesquisa.

– São elas, do jeito que eu imaginava – em instantes Carol mandava o arquivo para impressão.

O traço fino e as cores fortes, vivas, são sinônimos do sucesso da procura incessante de Carol por nove minutos. Portanto, já fazia uns quatro que Manu contemplava a secretária ao apoiar seu braço na porta da sala de espera. A morena se empolgou tanto que nem notou a aparição do rapaz.

– O que tem de especial nessas flores? – desconfiava Manu ao retirar o papel colorido da impressora.

– Nada. Bem, quer dizer, o que você acha de eu tatuá-las bem aqui? – Carol demonstrava um entusiasmo ímpar ao amassar a folha timbrada na parte de trás do ombro.

– Expressa bem o seu lado romântico. – com discrição, Manu sorri – Curto o seu jeito, é sério. Não tá a fim de almoçar?

– Está bem – enrubescia Carol um instante antes de se afrontá-lo, agarrar a manga social de sua camisa e com outra mão deslizar os dedos em torno dos lábios.

[Manu e Lígia] Morango no Ombro – Parte 13

Cinco pessoas entravam ensopadas no ônibus pela manhã. Todas já estavam familiarizadas entre si por causa da rotina diária dos últimos meses. Dentre a lista de passageiros freqüentes, Carol era a cliente mais recente do transporte público. A outra novata era Renata, que desce um ponto antes da morena.

Por ser meio preguiçosa, é natural que Renata perca o transporte umas duas vezes na semana. Até porque o coletivo não tem um horário fixo para entrar na Avenida Ana Néri, é todo desregrado quanto ao tempo. Desde a última sexta-feira, é a primeira vez que Renata consegue embarcar no mesmo ônibus de Carol.

A pouca diferença na idade – Renata é um ano mais velha – faz com que ambas se tornem confidentes por excelência. E a universitária em Farmácia sabia toda jornada amorosa de Carol e seu desejo pelo estagiário da Assessoria Gramado.

A morena contava pouco a pouco como era beijada por Manu enquanto arrumava o penteado. Os negros cabelos lisos esvoaçavam fácil. Precisou da ajuda de Renata que, com as mãos escorregadias de tanto hidratante, mal fechava a janela do ônibus. No mesmo par de assentos, Renata acompanhava a rica descrição da secretária.

– Então o beijo dele não tem muito mistério – disse Renata antes de mostrar os dentes em um sorriso típico de canto de boca.

Carol exibiu uma covinha zangada. Para ela, o estagiário era um pop star eterno, uma lenda do rock encarnada. Sua mente pairava sob Manu, Renata até se mostrava fatigada de tanto ouvir apelidos carinhosas.

Concentrada devaneios próprios, Renata deixou cair a bolsa. Esticou o braço direito e suas costas nuas estiveram expostas. Uma tatuagem de morango no ombro com contorno forte, como se fosse logotipo de marca de sorvete. Em contraste com a pele pálida, o desenho despertou a atenção de Carol.

Para a universitária, foi melhor mudar o assunto. A tatuagem era bem recente, poucos dias que tinha protegido-a de um tecido plástico. Marca definitiva para agradar o novo namorado e os futuros, claro. Ela disse que tatuagens pequenas em lugares estratégicos são potencialmente charmosas e sensuais. Renata, aliás, adora mexer com o imaginário masculino.

O corpo esguio e os quadris largos característicos de sua silhueta chamam facilmente os olhares masculinos. Aos dezenove anos, Renata tinha ondulados cabelos negros até a cintura, a sobrancelha arqueada e os olhos oblíquos faziam destacar uma sensação de inocência para quem a encarasse. Ela tinha muita sensibilidade na nuca e, por vezes, fraquejava diante de arrepios espontâneos durante o dia. Um desses ocorreu durante o seu discurso sobre o morango e a sedução.

Despertava também o interesse de Carol, que, se não fosse pela dona Aurora, já tinha debutado a sua primeira tatuagem. A flor que representava seu tributo ao pai. Era aquela imagem cheia de pétalas de cor vermelho-sangue, espinhos e uma folha colada ao caule. Melhor, duas flores, sendo a segunda em homenagem à mãe. Contudo, dona Aurora sempre foi irredutível em suas ações. Não seria diferente dessa vez, mesmo se tratando de um símbolo carinhoso.

Poderia até ter as imagens gravadas nas costas. No busto seria ousadia demais, ao contrário de fazer no tornozelo. Assim passaria imperceptível por todos e não faria uma justa homenagem. Imitar a amiga e usar as costas como tela da tatuagem seria a opção mais correta. Pensando em quanto dinheiro guardava no banco, e que já faz quatro meses que assumiu a maioridade, deduziu que não precisaria pedir autorização à mãe para que desenhassem em seu corpo.

Logo Renata falou para Carol conversar com a dona Aurora. Não conhece a opinião dela, pode até contrariar a ordem da casa, ser agredida, despejada ou assassinada. Mas essas atitudes grotescas nem estiveram na lista de pensamentos da universitária. Somente uma questão preventiva entre mãe e filha. A morena disse que atenderia o conselho de Renata, que se levantava para descer no ponto a seguir.

[Manu e Lígia] Olhar reprovativo de Michele – Parte 12

Vários papéis foram gastos para Manu limpar a merda seca de seu tênis. Profundamente enfurecido após a discussão com Maurício, foi desastrado ao pisar no cocô na Rua Vargas de esquina com a via de nome Getúlio Barbosa. A primeira ação que fez ao chegar à companhia de dança foi entrar no banheiro masculino. À vontade, ficou descalço do pé direito e se muniu do rolo de mísero papel higiênico.

A cada folha usada, uma decepção a mais por parte de Manu. Não era suficiente a quantidade de papéis que ele se sentiu obrigado a molhar os últimos antes de esfregá-los no calçado. Foi uma decisão mais feliz. Saiu do banheiro valorizando uma missão cumprida. Caminhou alguns metros e viu a mancha no contorno lateral da sala.

O rapaz virou-se para ir ao sanitário, até que se viu amarrado pelos braços de Michele. A oriental o abraçava forte estufando o peito com tamanho entusiasmo. Cumprimentou-o com um beijo no rosto e logo repousou a cabeça em seu ombro. Suas mãos foram escorregando pelas costas. Para fingir reciprocidade, Manu a envolveu pela cintura fina e como recompensa escutou um suspiro acentuado.

Ela fechou os olhos e os cabelos inclinaram ainda mais para o chão. Falou quanto considerava belo o dançarino e Manu levemente se encantou com as palavras. Mas o franzino até debochava das românticas e a primeira imagem fisgada pelo seu pensamento é de Michele abrir os olhos e notar a lateral do tênis bem a sua frente. O medo fez a soltá-la por instantes.

Michele estranhou, perdeu brevemente a esperança de conquistar o rapaz. O tremor lhe percorreu a espinha em forma de arrepio. Manu percebeu o desalento da oriental e tomou-a novamente para si. Ela novamente se derreteu e quis intensificar o momento. A sensação de proteção, ela teve que encará-lo hipnotizada. Ele aproveitou a chance para ciscar o pé. A sujeira grudou no assoalho.

Manu se expressou com os lábios alargados. Mih sentiu um odor estranho, mas não resistiu quando o dançarino a envolveu pela cintura. Os dois conversavam se afastando mais e mais do mau cheiro. Falavam sobre os passos de balé, até a moça se embaralhava depois da mudança repentina de melodia. Talvez fosse melhor a professora trocar a segunda parte da trilha.

O problema é que ao encostar na barra, Michele percebeu que um vulto se aproximava. Ela não queria dar atenção à quase loira, mas essa estava indo mais e mais em sua direção. A oriental notou a reação alegre de Manu e achar Lígia. Só ela tinha uma face inexpressiva, mas pelo fato de ser míope.

Cumprimentou a oriental e deu um abraço caloroso no rapaz. Ele já tinha se sentido assim noutras duas oportunidades nesse dia. Manu estava disposto a confessar o segredo de Maurício. A relação do casal não tinha sentido para seguir em frente.

Lígia encheu-o de perguntas, muita ansiedade a deixava assim, curiosa. Por ser alta e estar usando um calçado de centímetros ainda maiores, curvava-se um pouco para escutar o franzino. A fita quase caíra sobre a franja em duas oportunidades. Manu era vago nas respostas, esquivou-se dos principais detalhes sobre a vida amorosa do amigo. Não desejava assumir o papel de pivô da separação.

Michele considerou todo aquele interrogatório como uma investida amorosa da amiga. Ela percebia que estava sendo feita de tola pelo dançarino, para acrescentar nos comentários dos dois, mas se sentia impulsionada a intervir no diálogo.

Enquanto Lígia explicava toda tensão em conviver com um rapaz infiel, a oriental hesitava em dizer que já tinha sido traída aos quatorze anos. Era um caso que não precisava de relatos. Da mesma forma, não sabia como tentar interferir no discurso de Manu sobre a valorização do afeto nas relações.

Um tratado com base nas frases mais célebres de Saint-Exupéry e São Paulo. Sendo que o último escritor redigiu a carta sobre o amor. Lígia e Michele conheceram um lado poético e humano do dançarino, digno de despertar qualquer paixão.

Já se passava vinte minutos e a professora de dança sequer tinha justificado sua falta. Outro trio de garotas cercou-os e incentivou a desistirem do ensaio. Michele se contentou com a mudança brusca de assunto, porém, a discussão logo cessou. As sandálias da Inácia bateram no piso do tablado. Ensaio com meia hora de atraso.

Foi com entusiasmo que Michele respondeu o chamado da professora ao fazer par com Manu no treino da nova dança. Por ser indefectível em seus passos, era simples reconhecer o seu talento para tal arte cênica. Ela logo arrumou o rabo-de-cavalo e com as mãos nas costas, aprontou-se para estar ao lado do rapaz.

Tomada pela mesma sensação do último ensaio, não passou despercebido por Lígia um certo apreço por Manu, especialmente após escutar palavras tão bem cuidadas por ele há quinze minutos. Parecia que o dançarino sabia lidar mais com o sexo oposto comparado com a desenvoltura de Maurício.

Entretanto, ele trata bem todas as garotas e não é de fazer muitos galanteios. Somente naquela noite no cinema. Enfim, Lígia estava satisfeita ao se deixar contaminar por um sentimento de admiração pelo franzino. Nem se preocupava se ele não tivesse um abdome bem definido.

O que havia de mais valioso em Manu era aquele olhar intrigante, muitas vezes insano, inquieto. Charme mesmo era como mexia os quadris, Lígia detalhava minuciosamente cada passo ou gesto do rapaz durante a dança. Fez-se de surpresa quando o ousado puxou conversa. Desobedecendo o ar de reprovação de Michele, ele agarrou a quase loira pelo pulso.

Metros a menos, distância fala tocar-lhe a nuca, empurrar umas mechas para trás – sem o apoio da fita – , mordiscar o pescoço e dar breves palavras a Lígia. Quem sabe um pedido de desculpa, ou apenas um ato para enciumar a oriental chamativa. Por ora, tratava-se de um irrecusável convite visto de longe pela aborrecida Michele.