Carta de um anjo da guarda

Querido irmão em Deus,

A primeira coisa que preciso dizer é que sou egoísta. E que quando recebei a notícia, vim o mais rápido que pude. Não podia aceitar que isso estaria acontecendo justamente com você. Sei que nosso último contato já faz tempo, é que te conheço e, portanto, também sinto parte dessa masmorra em que você se encontra. Você não devia estar aí, não mesmo. Nem tem idade. Você é tão esperto, ativo, e um tanto ligeiro nas conversas. Por que não pude te segurar antes de você parar aí?

Não espero que você me abrace, na verdade deveria ter te abraçado aqui perto, em outros campos. Já falei que essas paredes não combinam com você? Cara, você merece o melhor lugar do mundo, por que foi parar aí? Não precisa dizer. Não precisa. É culpa minha, se minha mão fosse tão larga a ponto de acompanhar-te mais de perto, talvez você não se encontrasse assim, de joelhos. Sou eu que preciso estar de joelhos pra você, sou eu que te cativei e que não consegui ver seus passos tão distante.

Fui eu que te traí ao te abandonar assim sem mais, nem menos. Deixei outros anjos por perto de ti, porém, são incapazes de fazer o que lhe devem. Seus sorriso é lindo, amigo. Gostaria muito de vê-lo, de fazê-lo sorrir. Mas sou egoísta, e por ser egoísta compartilhei a outros as tarefas celestes de te seguir. E por ser egoísta me sinto mais mal, porque sei que se eu tivesse as asas que poderia ter, se eu pudesse mesmo mudar o mundo e voltar ao tempo, a primeira coisa que faria seria te discernir melhor sobre as coisas aí da Terra.

Por isso, vim aqui pelo meu egoísmo. Meio tarde, eu sei. Pode me abraçar quantas vezes quiser, você não devia saber que as coisas acabariam assim. Nem eu imaginava. Aliás, nem eu estava do teu lado. E vim aqui. Pra te pedir perdão. Trago sua foto, aquela preferida de sua formatura do colegial. Você ainda pode fazer a diferença, você é muito melhor do que eu. Você é mais inteligente do que eu, e acho que você já sabe disso. Guarde essa garrafa de ódio. Esvazie ela. Por mim. Até porque sou egoísta mesmo.

Mas, por favor, espero que você me perdoa pela minha partilha com outros e, portanto, por minha omissão. Hoje também estou morrendo aí contigo. Gostaria, preciso estar no seu lugar. Porque acho que só assim conseguiria te fazer sorrir de novo. Me perdoa.

*Lincoln, o omisso

Off the Record [2]

Não podia sequer imaginar que em menos de uma hora estaria frente-a-frente com uma das mulheres que mais admiro em minha vida. Ao contrário de tantas outras que tenho a oportunidade de revê-las durante a semana, essa só conheci por fotos e dizeres de meus pais. Seria um anjo no comentário de tantos. Talvez até marcar uma entrevista fosse um motivo secundário para que eu a encontrasse. A cada metro que avançávamos perto de seu lar, apertava meu peito com a louca ansiedade, aquela idêntica ansiedade que tenho antes de subir ao palco.

Era ela a personificação de tudo o que considerava íntegro e de caráter. Certamente ela tem a posse de minha confiança, mas não podia deixar que ela notasse isso. Precisava ser cético, impessoal e preciso. Creio que apesar de toda a amistosidade de um bate-papo que ultrapassou duas horas, a mulher angelical sequer imaginou que fui um dos (milhares?) de seguidores de seus ideais e projetos. E isso foi a melhor forma de me apresentar a ela, o modo certo, mesmo que por dentro quisesse ser uma companhia inesquecível de uma tarde qualquer.

O diálogo somente me deixou mais anestesiado, observando uma mulher culta, incorruptível e solidária. Abriu seu coração como se nos conhecéssemos há anos: ela confia em mim para que eu possa confiar em suas palavras. Confiei. Falou-me de todos os desafios e situações constrangedoras ao se tornar um anjo. Descreveu-me toda a inveja humana e sentimentos impuros que habitam dentro dos reles mortais. Senti compaixão, em seguida ela me amansou. Contou o segredo: “ninguém tem culpa de me tornar um anjo, é que eles confiam em minha responsabilidade.”

Durante todo o encontro em que abordamos os aspectos de ser tão angelical, com seus poderes transversais a ponto de mobilizar as pessoas, a mulher exemplar me confessou um segredo. Anjos nem vivem em dilemas, ao contrário do pensamento de Wim Wenders. Anjos se apaixonam, sim, por trapezistas, também desabrigados, prostitutas, presidiários, e aqueles que não têm esperança. Anjos se apaixonam por todos a ponto de serem altruístas naturalmente. Levantou uma asa e convidou-me ironicamente a ter uma vida como a dela.  Quase aceitei, no momento, não.

Sorriu com os olhos, virou-me e antes de subir ao horizonte, ela me fez admirá-la ainda mais. “Não me vejo longe das pessoas, e sempre estarei por perto de vocês”. É, não posso duvidar das palavras de meus pais.

*Lincoln, o repórter

Gn 32,24

Doze badaladas e a observância aos trajes róseas. Encostava a mão em meu ombro e, sem medo, gritou que meu lugar era lá. Enquanto o autoritário anfitrião estiver fora, pode-se entrar na casa e todos são bem recebidos. Quiçá, o líder do principado, tão rei quanto, partirá em outros campos, é necessário que um novo nome assuma. Atravessou a porta alta, o tremor desigual. Madeiras à parte, munido de mãos vazias e todo o corpo coberto. Sob ele, um anjo incomum.

Traria uma mensagem sinestésica. Sensorial. Cabelos longos, pele jambo e olhos de ressaca que distoam da arte barroca. Puxou-me pelos braços com idêntico temor. Camuflava o chão falso um tecido alvo. Tecido alvo dos dois.

De pé, as fitas se desatavam pouco a pouco. Costas retas, a parede transpirava. As asas envolviam sem jeito as ofensas. A boca violava, maculava. O ventre ganhava manchas.  Mechas conduzidas contra si, atordoava-se.

Meus olhos, Vanesa, até mudavam de cor. Caídos no chão, gritos altos, perturbantes. A porta tenta bater, nem escutam o que está ao redor. Pela cintura frágil e esguia, não conseguia conter o anjo. Escapava pelo braço suado, segurei covardemente por detrás das asas.

A áurea mais intensa, o brilho vivo, o sangue jorra. Mãos sufocam, peito aperta, braços arranhados entre os boquiabertos. Dor inestimável, desfalece o anjo. Não se rendiam, os instintos lhes fazem brigar com as mãos, as pernas, os lábios.

Entreolhavam-se, aparentava intimidade. Retoma o ritmo e o pano aguado implora pelo fim. Ambos machucados, cansados. Pernas trêmulas, jogava-lhe de lado, subira em mim como se fosse animal. Mostrava os dentes, língua suja. Minha língua também imunda, consciente do erro em duelar. Voltava a ser criança. Não havia trégua entre os dois.

Os corações palpitam em uníssono e a aurora logo vai. Caracóis nos cabelos secos, aramados. A longa trança caía sobre meu colo arrepiado. Sequer sentimos o frio com tantas investidas e ataques. O conflito eterno, distante de todos. Em um local escuro, nebuloso como meus sentimentos. Depois de tantos golpes, o inevitável escorre à sua coxa. Era o sinal. Houve o som, o chamado, e o anjo se resguardou sem resistir.

Me abraçou e, dessa vez, senti o mel: sussurrou que eu reinava com Deus. E foi sem se despedir. Deu-me as costas e caminhou para o céu onde nunca irei pousar. Imbuído da minha missão, a porta aberta. Mutilado pelo cansaço, frígido pela saudade, convite reforçado. Sem a áurea vistosa que Ele levou de mim, invisto na maior das decisões.

Minha voz ecoa e ninguém faz questão de responder, sou intocável. Lavo as mãos, mas a unção do anjo não se afasta nas águas. Fora do rumo, anseio o surreal. Somente me resta felicidade no novo reino. Ele me deseja e deseja precisar de mim. Confesso até que há uma certa vontade de dividir a coroa do ex-líder.

Mas é que sempre sonho com anjos, não me deixa ir.

*Lincoln, o evangelista