– Vai dizer que já não reconhece meu castelo?
– Esses lustres, esses tijolos, esses jardins. Dava pra adivinhar, sim. Para onde, leva esse tapete?
– Espero que seja ao banquete real. Já estou com fome.
A dama de ouro falava sorrindo e saltitava pelo tapete. O vestido longo, as meias longas logo cobriam os pés. Na verdade, parecia que ela flutava seguindo o cheiro da comida. Já estava fatigado de tanto andar, mas precisava acompanhar a moça dos olhos curiosos.
Tentei me segurar em suas mãos, contudo, a fome dela falava mais alto. Demos de cara com uma porta gigantesca. Ela inclinou a cabeça e inclinei a maçaneta. Sala vazia. Porta do lado direito? Sala vazia. E assim brincamos de pique-esconde com o livro rósea por diversas portas.
Nenhuma delas nos mostrava uma mesa farta com peito de peru, batatas fritas, sopas ou pilhas de moedas de chocolate. Sequer mostravam o estimado título que procurávamos. Na última porta adentrar do primeiro andar, encontramos uma parede falsa. É, devia ser lá.
Sombras de um casal em plena paixão e convidados assustados. Até a dama de ouro se fazia convidada desse banquete. As sombras param, as luzes apagam e de novo estamos ouvindo aquela trilha sonora inconfundível. Mas dessa vez, risadas, lágrimas e declarações de amor em grito mesclavam com os sons.
Uma luz piscou em nosso caminho. Segurei a mão tímida da dama e atravessamos a sala escura em direção à ela. Minha parceira nem reclamou muito por mal ter conseguido jantar. Também estava com fome, mas prometi uma porção de salames (a de isca de frango sempre é mais cara, tente comprá-la) após reencontrarmos o livro reluzente.
E no meio da correria, deixo a mochila cair. Antes de qualquer livro escapar , fecho-a percebo no chão uma carta, ou melhor, um pergaminho. Eu disse um? São dois. Um para mim e outro para a dama de ouro. Ambos caídos da mochila, porém, a dama jamais tinha percebido. Curiosos, cada um abriu sua carta.
Eram de dois anjos da guarda. De nossos anjos da guarda. E os lábios da dama se alargavam, e os olhos lentamente marejavam. Enquanto o anjo Raphael me desejava um nobre coração, o Giovanni falava de sua paixão incondicional pelos jovens, especialmente a dama. Até invejei, porque o Giovanni e a dama fazem aniversário do mesmo dia, e demora quase quatro meses entre uma comemoração minha e a de Raphael. E qual é o aniversário de seu anjo da guarda?
A dama de ouro sentou ao meu lado no tapete vermelho. Começamos a chorar juntos ao ler as cartas, até porque não recebemos muitas cartas quando não são cobranças de luz ou aluguel de cortiço. Cabisbaixa, levantei um pouco seu queixo-de-Travola e me perdi ao sentir o coração acelerado. Abracei-a forte e cerrei os olhos. Não queria perdê-la e não sabia como encontrar seu livro.
Com os olhos abertos, descobri que estávamos na sacada da mais alta torre do castelo da dama de ouro. O sol já debruçara nas montanhas e podíamos ouvir os sons dos passáros – isso sim é música. As flores coloridas e as cores floridas por todo o gramado. Pessoas sorriam sem não apontar para nós. Deu vontade de registrar o momento com uma foto. Ou de dançar com ela. Ou de tocar em sua boca com a maior admiração do mundo.
Queixos coçando, mãos entrelaçadas, nucas arrepiadas e afeto. Uma mochila guardou o último livro, restando uma página a rasgar. E nem sei diferenciar mais sonho de realidade, mas tenho certeza que li ‘esperto amor, com pranto a me cegar / pra cobrir erros quando o amor olhar’.
P.S.: Se todo meu devaneio foi verdade, espero que a dama de ouro também guarde todas essas sensações no coração.
*Lincoln, o apaixonadinho