Nossa primeira vez

Vai dizer que o silêncio lá de fora não te incomoda? Mal sei quem está lá para nos ver, são seiscentos assentos. Duvido que tenha alguém além de nossas mães. Seus amigos da facul? Difícil também, só se for na quarta fileira. Não, não somos tão amados assim, deve estar meio vazio o lugar. É tudo muito estranho, deve ser porque seja nossa primeira vez. Meu pai já subiu aqui também, faz muitos anos. Ele disse que foi o dia mais longo da vida dele. Se importa de eu confessar que sinto a mesma coisa?

Calma, a Marina não veio também. Ela não ia te acompanhar na hora da dança? Ah, é? Não me faça rir, você sempre considerava tanto ela. E sabia que ela já tinha ficado com seu ex. O Danilo, quem mais seria? Como assim você o convidou? Pra vir pra cá? Esse é o nosso momento, você não devia tê-lo convidado! Não importa se ele vai sentar na última fileira, lá perto da porta, ele nunca nos quis juntos. Olha, olha como estou! Minha respiração até fica ofegante, me enoja cada vez que você fala o nome dele.

Não quero saber! Não, mesmo! Passamos meses juntos e pensava que você já tinha entendido o meu jeito de ser. Ah, eu que sou difícil de lidar? Tente se lembrar de quem é que ficava chorando em frente ao espelho todo sábado por causa desse cara estúpido! Tente se lembrar que enquanto esse idiota não dava a mínima pra você, e você fazia cena, quem era que estava do teu lado! Depois não me venha dizer que está arrependida por me deixar envolver nisso tudo.

Eu te amo também. É que não gosto dele. Só isso. Ele traz más vibrações. Sei que vai tá escuro onde ele se sentar. É dele isso, é dele. Bem, deixa pra lá. Você está pronta, mesmo? Daqui a pouco vão tocar a música e… A emoção vem à boca, sente meu coração. Coloca a mão aqui. Tá sentindo? É você quem me causa isso também. Claro que nesse vestido você está linda. Sempre imaginei quando chegaria esse dia, minha linda. Deixa eu arrumar seu véu. Só de saber que vou estar contigo por tantas outras noites… Te amo.

Você está pronta? Olha, se quiser, a gente pode apagar as luzes e… Tudo bem, estou pronto também. Me dê a mão. E daqui pra frente é só nós dois. E vamos estrear, enfim, nosso espetáculo no Teatro Municipal! Márcio, pode subir as cortinas?

*Lincoln, o estreante

Êxtase

Ele falou que sempre que via um pôr do sol bonito como aquele sentia que não era para ele. Não sabia explicar. Era como se o pôr do sol fosse para outros e ele estivesse vendo clandestinamente, sem autorização, espiando o que não lhe dizia respeito. Sentia-se, assim, um penetra no espetáculo dos outros. Ela não entendeu.

Você acha que não merece, é isso? Que é bonito demais para você? Que você não tem direito a um pôr do sol dessa magnitude? Que o sol deveria se pôr com mais discrição para pessoas como você, que cada pôr do sol deveria ter uma versão condensada, menos espetacular, para os imerecedores da Terra, é isso? Não, não, disse ele. Eu mereço. Não é uma questão de humildade. É uma questão de…

E deu outro exemplo. Sorvete de doce de leite. Sempre que comia sorvete de doce de leite tinha a mesma sensação de clandestinidade. Aquela doçura, aquele prazer, não podia estar assim disponível para todos como, como… como um pôr do sol! Era preciso haver uma hierarquia no direito às coisas magníficas, senão nenhuma escala de valores na vida tinha sentido. Se qualquer um podia comer um sorvete de doce de leite quando quisesse que sensação sobraria para as grandes epifanias, para o êxtase das grandes revelações?

Comer um sorvete de doce de leite nivelava toda a experiência humana, diante de um Michelangelo ou de uma chuva de estrelas a sensação seria a mesma. Lera em algum lugar que os fabricantes de sorvete de doce de leite tinham hesitado muito antes de lançar o produto no mercado. A preocupação deles era outra: temiam a corrupção irrecuperável da humanidade. Depois de provar sorvete de doce de leite as pessoas poderiam se ver fragilizadas, indefesas diante da autoindulgência e da lubricidade, ou perdidas pela culpa. Tinham até pensado em vender o sorvete com um aviso, como os cigarros. “Atenção: pode causar dependência e ruína moral”.

Ele não defendia uma aristocracia com acesso exclusivo ao bom e ao bonito. Só achava que ver um pôr do sol fantástico comendo sorvete de doce de leite deveria ser, assim, como se você fosse um dos escolhidos do mundo, com o crachá correspondente. Licença para se extasiar.

E então ele deu outro exemplo: você aqui na minha frente, com as cores do pôr do sol refletidas no seu rosto. Uma exclusividade minha, um privilégio dos meus olhos, uma injustiça para todos os homens do planeta que estão olhando outra coisa. E ela falou “Não exagera, vai”.

*Luiz Fernando Veríssimo, porque ele me entende

Toda felicidade previsível

– Por que você não me falou que foi sair com ela?
– Você faria graça, mãe. E como você sabe que eu vi a Bruna?
– Filho, quem mais te faz sorrir desse jeito?

O peito de Rafael transborda antes e depois de acordar. É previsível que a imensa felicidade do rapaz foi de ter horas dedicadas de Bruna ao seu lado, ‘a melhor companhia de qualquer dia’ segundo ele. Trata-se de um dos raros momentos em que ele confessa seu egoísmo sem deixar de pensar na felicidade da amada: o plano de Rafael é apenas compartilhar sua felicidade com a menina moça naquele anoitecer.

Se antes, o rapaz se entristecia porque pensava que ela jamais o queria vê-lo, pelo contrário, a menina moça não seria capaz de querer isso também. Talvez por isso seu coração bate cada vez mais forte no reencontro. Mas, qualquer um que passasse pelos dois, pensaria que estavam se encontrando pela primeira vez. Tem um brilho nítido no olhar deles – um brilho demasiadamente lindo que nem esse autor é capaz de entender.

Com Bruna, Rafael é apenas elogios sinceros. Ao contrário de quando está com amigos, fica tímido, vermelho e falante, não quer perder um instante com a garota com que ele mais se importa. Com Rafael, Bruna é toda carinhosa, olhares e sorrisos. Se é mais extrovertida com amigos, no momento não quer perder um instante para ouvir a palavras maravilhosas do coração de cada um.

Claro que Bruna é linda, e o rapaz de óculos tem um ciúmes bobo de perdê-la para um ‘qualquer’, que aquele momento e sentimento possa ter sido em vão, mesmo sabendo bem o jeito dela que ele tanto admira. Claro que Bruna sabe que é linda, e não mostra qualquer preocupação em perder Rafael, confia demais que ele realmente a ama demais, até porque ela já conhece o jeito dele. Ele a considera como melhor amiga, amada e até amante. Ela ri.

Abraçados, Rafael beija várias vezes seu rosto e pergunta: você sabe que posso te fazer a mulher mais feliz do mundo? De olhos fechados, Bruna sorri tímido e inclina a face positivamente. E naquele momento, juntos, toda felicidade é possível, todo amor é previsível, e certamente todo o futuro estará pronto para provar pouco a pouco essa história.

*Lincoln, o todo romântico

Clique de Sorte

As mãos de Guilherme são leves, levianas e de toque macio. Não há dedos calejados, unhas grossas ou mal cortadas. Tenta deslizá-los sem mnuito sucesso por cima do colete de Olga. Mas é só passar a mão pelo pescoço dela, envolvê-la, que ambo se deixam iludir pelos sonhos mais belos. Sentada ao lado dele, ela quase fecha os olhinhos antes do beijo. Mas ele vai lentamente aproximando os lábios e, em certo momento, não se há mais momento algum.

Olga abre os olhos e vê aquele olhar bobo de Guilherme. Mal dá para escutar no barulho ensurdecedor das pessoas que estão falando ao lado na praça da alimentação. A verdade é que tudo foi muito repentino, em menos de uma semana já estavam os dois desconhecidos abraçados. Tiveram sorte – muita sorte – de terem se encontrado, até mesmo porque qualquer psicólogo e socialista vive a falar dos riscos da Internet.

É, deve ter sido um clique de sorte. Quem pode imaginar que sua vida poderia ser tão simples, que você pode se identificar com alguém logo à primeira vista? Parecia ser um jogo qualquer e que não levaria a nenhum resultado. Olga até estranhava quem poderia surgir dentre tantos perfis. Só que cada momento entre eles era envolvido por uma brisa fantástica, um interesse despertado e recíproco.

Parado ao deslumbrar o seu sorriso, Guilherme mal esperava ter ela tão perto de si, e descobrir pouco a pouco que Olga é tão encantadora. A pausa, como deve imaginar, foi em questão de instantes. Como peças encaixadas num quebra-cabeça, nesse jogo tão distinto não houveram perdedores. Ou melhor, não podemos negar que os dois se perderam naquela tarde. Entre olhares, sorrisos e beijos.

*Lincoln, o internauta

Toque Eloquente

Neto é um ótimo rapaz e todos do bairro o respeitam como uma liderança nata. É jovial, e apesar da barba estar para fazer, os cabelos encaracolados e uma das caras mais carrancudas, Neto é a opção predileta de genro para muitas quarentonas e cinquentonas das redondezas. Contudo, ele não tende a ser o cara exemplar, é como se atrás do angelical houvesse uma personalidade distinta, instintiva, incisiva.

Suzan sabe disso muito bem. Aliás, Suzan não tem o melhor perfil como alguém propensa a namoros. Os amigos de Neto disseram que ela deve ser a mais volúvel mulher de toda a Cidade. Contudo, no fundo, Suzan é apenas uma garota carente que não consegue lidar com seus sentimentos, nem com as pessoas com quem se relaciona. Suzan tem pureza, ao contrário de Neto, que consegue convencer a todos que é uma boa pessoa.

E juntos, a carência mescla tão bem com o instinto. Forjam-se papéis, caem máscaras e a insaciável, na verdade, é quem está acorrentada. O disciplinado certamente é o megalomaníaco, irreverente. Quando ele a abraça pela cintura, quando ela massageia os lábios dele com a mão, tudo é eloquente. Atitudes sinceras, pensamentos espontâneos, reações naturais demais. Assim são Neto e Suzan, casal de apaixonados.

*Lincoln, o mascarado

Paixão tímida

Hora de viagem, mal assentado, dor nas costas. Descer no ponto, atravessar a rua, percorrer degraus. Parece estação de metrô, mas órgãos públicos tem aparência idêntica, mesmo. Entra no corredor, do outro lado, uma parede aberta (pelo menos, na parte de cima). Cabelos lisos, clara pele, olhos verdes, belo colo, quadris largos, altura mediana-baixa – digna de donzelas que precisam ser protegidas.

Não dá pra esquecer o rosto dela, escondidoora pelas vigas, ora pela tela do computador. Sempre que passava pelo corredor, desengonçava-me a espiar um pouco mais da tal recepcionista faz-tudo. Era difícil, mas não impossível me esbarrar com ela no corredor. Eu descia com papéis para serem fixados nos murais, ela subia com o café-da-manhã do setor.

De certa forma, sinto que sempre estivermos ligados. Percebia que os olhos dela ganhavam vida ao me ver. Também era nítido meu encantamento ao achá-la. Não desviávamos os olhares, sorrisos tímidos, poucas palavras (o comprimento comum). As mãos nuas confessam nossos estados civis, mas nunca fui bom conquistador e ela deve ser tão romântica quanto às do século passado. Tem tudo pra não funcionar.

Talvez dentro desses sete meses ela já deve ter beijado vários rapazes. E não precisa saber como são minhas noitadas. Era desinteressante os fins-de-semana ao encontrá-la na manhã seguinte. Nos instantes, era nós e isso bastava. Foi em seus suspiros (e meus também) que encontrava consolo ao me sentir invisível por muitos e outras. Nessa semana, confesso que nem tanto, mas também desejo que ela tenha a mesma sorte. Porque ela merece o assim.

Contudo, era a melhor amante. Sem ciúmes de lábios alheios, apenas cativante e recíproca. De sorriso gentil. Aquela que se felicitava ao me ver, mesmo sem sabermos meu nome. Com trabalho às dúzias, é impossível de conversarmos normalmente. Mas era a melhor paixão – bem  silenciosa – pois mantinha um amor pueril à qualquer vista. Enfim, hoje viemos a falar um com o outro.

Ao pedir demissão, tive que passar pelo corredor. Aliás, entrar na sala e pedir a ela o papel que, depois de meses tão convicto do contrário, pensei em rasgar. Pela primeira vez, nossos encontros não provocaram sorrisos. Decepcionada, me desejou ‘boa sorte’ e eu, ainda encantado, fazia convites de ‘boas festas’. Esquecemos de trocar os nomes, apenas olhares. Mais belos olhares de toda a vida.

*Lincoln, o sortudo