Se escalamos as montanhas com as mãos, claro que devemos descê-las com os pés. Mochila aberta nas costas, caminhava rumo abaixo atrás dos quase cinquenta livros perdidos entre as pedras. Uns caíam em buracos falsos, outros se enroscavam nas plantas. E era tão fácil achá-los, já que só precisava ter uma boa audição: as flores gritavam. E gritam alto, imagina? Muitas até se machucaram feio – também, joga a trilogia das Crônicas de Nárnia em sua cabeça para ver se não dói.
A cada vez que descia a montanha, alguns livros decidiam voltar para a mochila. Sim, nesse mundo cor de flor, são os livros que decidem quem deve ler ou para onde ir. Também não conhecia essa versão de livro, mas sempre tem aguns títulos que ganham vida própria por aqui, não? Uns são até em versáteis, lidam com todos os públicos, como ‘Sonhos de Uma Noite de Verão’ e ‘Auto da Barca do Inferno’. Não sei se era o que Gil Vicente esperava, mas muitos adolescentes só tem contato com a obra montando o próprio espetáculo.
Daí, percebemos o quanto as obras são vivas aqui em nosso mundo e o quanto elas já escolhem quem as lerá. Apesar de quando escrevo, sou ciumento e as palavras são mais minhas do que só suas. Tá, você entendeu, tem gente que escreve mais solto, não, Machado? Portanto, não foi muito difícil entender porque no mundo distante os livros literalmente sabem onde saltar. E enquanto convencia as páginas a pularem para dentro da mochila, fazia um ‘positivo’ para a dama de ouro, lá no cume da montanha.
– Quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete, okay?
– Ainda faltam dois livros. Eu sei que faltam, posso té vê-los daqui.
– Impossível, não há mais nenhum, não consigo encontrar. A não ser que estejam fugindo de mim.
Então a dama de ouro apontou em minha direção um dos títulos restantes, bem abaixo dos meus pés. A obra sequer hesitou quando a coloquei para dentro da mochila. Pronto, agora só faltava o último livro. E a capa rósea reluziu lá debaixo, num abismo pouco iluminado, mais parecido com uma fenda no solo. Confesso que não seria a situação mais cômoda da minha vida, contudo, por que obedeci minha curiosidade e fui abrir justamente a mochila?
Já estava perto da fenda, uma luz rósea de novo piscava e piscava. Devia ser um sinal de alerta. Ou brincando de pega-pega. Camuflada na escuridão, não tinha jeito senão adentrar também. Meu olhar foi procurar a dama de ouro, agora um ponto amarelado próximo do céu. Cadê ela? Ah, achei! E estava acenando. Quer dizer, está descendo. Descendo? Como? Um tobogã de flores? E elas reclamam ou vai dizer que não consegue escutar os gritos dela enquanto carregam a dama?
O tobogã deslizava de um lado ao outro, como um zigue-zague pela montanha. Comecei a gritar, erguer as mãos amedrontado para que ela não se acidentasse. Não poderia subir, já que estava de pé e, portanto, deveria descer a montanha. Se ousasse ajudá-la, ia cair no abismo. Foram uns poucos segundos de pânico, mas meu coração batia como se eu tivesse vivido quarenta minutos. Tudo é muito acelerado quando estou próximo da dama de ouro ou a vejo em apuros. Sensação estranha, não?
Aposto que a dama de ouro também não confiava se chegaria tão perto de mim mais uma vez. E os cabelos e as fitas de seu vestido voavam na direção oposta de seu sorriso. De pernas cruzadas no tobogã, fechava os olhos e levantava os braços como se fosse a maior diversão de sua vida estar perdida na montanha. Sorte que as flores eram sabidas do caminho. Não tão sabidas, já que elas lançaram a dama de ouro em cima de mim. Caímos os dois no abismo.
Meu joelho não estava ralado, só que tive uma vontade forte de chorar ao ver a dama de ouro desmaiada. Fui até ela, toquei em seu queixo de Travolta, mas não acordava. Agarrei em seu pulso, massageei o peito, e a dama sequer esboçava alguma reação. Uma lágrima já saía do meu rosto quando escutei um ranger de dentes. Rangeu os dentes mais uma vez e, de repente, bocejou. Estavam abertos aqueles lindos olhos de me fazer aninhá-la em meus braços.
Sem nenhum arranhão também, ela tinha me explicado que tinha passado outra madrugada sem sonhos. Por isso que teve vontade de me convidar a brincar em seu mundo cor de flor. Trocamos sorrisos singelos e ela se lembrou que deveríamos procurar o último livro. Não tínhamos ideia de como achá-lo e, caminhando de mãos dadas por aí, até onde a luz não consegue invadir. No meio do cenário sombrio, tropecei em uma pedra. Ouvimos um movimento da obra fugitiva e corremos atrás do som de seu, hã, passo.
Como um casal de cegos, percorremos quilômetros tentando segurar o som. E ele, leve e impulsivo, guiava-nos até outros sons. Parecia uma orquestra. É, uma orquestra, só que sem música. Uma voz esquisita, ora grave e fina, um barulho de percussão e outros de pedras e ossos. Ou algum som que imitava pedras e ossos. Cada um em seu timbre e em seu tempo. Tentava olhar para os lados, contudo, tudo era escuro e só conseguia apreciar aquela música que não chamo de música. Senti que a dama de ouro mal mexia o corpo também. Então não deve ser uma música. Ou é uma canção muito ruim.
– Você viu um livro por aí? – E a orquestra continuava a tocar sua música sem música.
– Tem certeza que você não viu um livro por aí? – Nenhum som fazia questão de me responder.
– Eu sei que vocês estão com um livro por aí!
A orquestra aumentou o barulho e, bem na minha frente, reluz uma capa rósea: ‘Poemas de Amor de Shakespeare’. A dama de ouro exclamou que era esse o livro que faltava. E me imaginei se estava em um sonho, porque é impossível que o autor de ‘Macbeth’ e ‘Rei Lear’ tenha seu lado romântico. Mas a dama de ouro estava tão empolgada nessa caça às obras, que era impossível de recusar seu pedido.Quando conhecer a dama de ouro, verá o quanto ela é encantadoramente divertida.
E a luz começou a fugir, e nós bem atrás, bem atrás mesmo. Até que vimos uma estreita brecha, uma brecha conveniente, uma larga brecha, uma baita brecha e saímos do abismo. Era um corredor imenso com dezenas de portas e lustres e tapete vermelho. Mal reparamos que a orquestra tinha ficado para centenas de metros de distância. Na verdade, o que nos preocupava ainda era encontrar o tal livro rósea de poemas. Para ser sincero, o que mais me preocupava era saber em que lugar estávamos.
*Lincoln, o ouvinte