Desaparecidos

Você reaparecer e querer fazer parte da minha vida foi o melhor pedido de desculpas. Foi contigo que aprendi espontaneamente a despertar e oferecer sentimentos. Você me despertou o meu melhor por anos e, quando se ausentou, fiquei sem chão, sem confiança, sem ânimo. Fiquei meio louco, torturando o que tenho de errado pra que alguém tão especial me quer tão longe. Você tem um valor enorme pra mim. Você tem e saiba bem disso.

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Você reaparecer me encheu de esperanças que tudo seria diferente, que você teria mais tempo, disposição e compreensão com a solidão e culpa que carreguei antes. Foi tanto tempo longe que o que mais quero é um tamanho tempo perto de você. Sou efusivo, eloquente e hoje vou sempre lhe pedir a atenção redobrada que não me deu antes. Mas o mundo não lhe oferece tempo e você tem razão quanto a isso.

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Você reaparecer me fez me iludir que nossa sintonia seria rápida demais. E minhas decepções e desconfianças só vão lhe magoar. E o que você menos precisa e merece é que magoe você. Você disse que me quer bem, perto e feliz. Mas você também não tem a paciência que preciso. E isso só me faz desconfiar se você tem mesmo essa vontade de me ver bem, perto e feliz.

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Você reaparecer me confunde, porque sinto que nada mudou, que você vai me deixar distante, sem tempo e que vou voltar a sofrer demais como antes. Abandono dói demais.  Está difícil confiar que a gente pode recomeçar, e se recomeçar com mágoas, acho que você vai me largar, mesmo. Então se hoje não pode ser do jeito que necessito, e vamos ficar em revides, então se você quer tentar estar perto, me dê um tempo para querer tentar confiar em nós.

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Talvez essa seja a melhor solução para gente recomeçar sem brigas.
Sei que você está bem e feliz. E não vai deixar de ser por este período.
Me abrace quando eu voltar.
Te amo, minha melhor amiga.
Com carinho, Lincoln.

 

Vulnerável a você

É, sou vulnerável a você. Cruzaram centenas de pessoas em minha vida, e, certamente outras centenas devem trocar palavras comigo nas décadas a seguir. É bem provável que algumas do litoral, outras do interior do país e quem sabe até em meu mochilão para a Holanda. Mais jovens, mais amadurecidas, mais loiras ou mais negras. Com ou sem deficiência. Acima ou abaixo do peso. Enfim, não importa quantas pessoas passarem por mim, com nenhuma delas consigo ser tão sincero, honesto, fiel, amável (embora às vezes ranzinza) e querer estar tão perto e tão bem quanto com você. Obrigado por fazer parte dos melhores anos da minha vida. E que eu possa fazer parte de muitos melhores anos da sua vida também. Feliz aniversário.

Para todos que têm um relicário

01Ligue a música. Tenho que te contar algo, e essa é a melhor trilha. Vou ser direto. Quero dividir minha vida contigo – independente do status civil, idade ou do endereço. Porque nestes dias andei pensando o quão feliz sou por conhecer você. Seu nome, seus lábios pequenos, suas mãos, seus cabelos, seu humor (ou falta dele pela manhã, da mesma forma que bocejo no resto do dia e pentelho), seu sorriso, sua simpatia e curiosidade em querer me desvendar, seu silêncio. E seu silêncio já diz muito muitas vezes. Já estamos tão zíper, sintonia, que de todos você não gosta é de me magoar.

Somos tão sinceros e confiantes (ora cagões, sim) juntos, que não consigo me imaginar longe de você. Você me acorda, me anima, me incentiva a ser uma pessoa melhor, ou melhor, a ser eu mesmo. E não duvido que você seja mais autêntica comigo do que com qualquer outro. Você é incrível e tem um coração que me faz admirar. A ironia, a sensibilidade, o idealismo, os sonhos, o impulso, o pé no chão, a fome, o sono, a vontade de percorrer o mundo, a esperteza, a incerteza, a compaixão, a discrição, o detalhismo, o empenho, a perseverança, enfim, a bondade humana. Tudo isso me faz pensar o quão você é única – e olhe, que dessas coisas, você não mudou desde que te adicionei no Orkut.

Bem, tudo é muito diferente agora daquela vez e das outras vezes, e provavelmente, qualquer caminho que façamos vai ser diferente também. Não vou me ater ao passado – ele já me traz muitas boas (e melhores) lembranças em sua companhia. Seja quando te ligava para lembrá-la de fazer resumos, visitá-la quando estiver doente, estudar Economia e você me mandar mensagens para evitarmos brigas ou tocar em mim na praia: ‘olha, com o tempo, tudo vai dar certo’.

E com o tempo vai. Talvez demore anos ou dias. Porque o que me faz tão feliz é perceber que estamos juntos, pro que der e vier e sem medo de errar. Porque independente do risco, esse mundo é muito pequeno pra nós vencermos. Passamos por tantos momentos e vamos experimentar tantos outros. Você já foi minha dama, eu sua dobradiça, seu Hobbes. E já passamos por tanta coisa juntos, que nada, nem ninguém pode separar o meu sentimento por você. E é mais que gratidão. É tanta alegria, tão precioso, que hoje, para mim, nossa relação é como um relicário. Eu amo você.

Todos os ritmos que me lembram você

Sempre fui desafinado para cantar. Talvez por isso, só tenha dado relevância ao que escutava aos 10 anos, quando aprendi a usar a flauta doce. Ou talvez porque tenho orelha pequena. Vai saber. Entre os 11 e 13 anos, até fiz curso de violão com um maestro de orquestra. Carreira promissora? Ledo engano. Não passava dos clássicos dedilhados. Desde então, meu contato com as trilhas se resumiam aos videoclipes da MTV. Mais pela imagem do que pelo som.

Mas quando você, Késia, apareceu teclando na minha frente, parece que todos nossos momentos tem uma canção por trás. Afinal, você é quem traz música no meu dia. E, por isso, queria deixar algumas melodias que sempre me fazem pensar em você. Talvez nem tenha ouvido para escutá-las hoje. Já deve reconhecê-las de longe. Mas vou publicar aqui, porque é a minha forma de equalizar meus sentimentos por você. Para sempre. Eu te amo.

P.S.: Sei que você faz R.I. e adora músicas estrangeiras, mas ainda sou meio lerdo pra entender a letra, poxa vida.

*Lincoln, o /namoradodakesia

Flor murcha mágoa

Eles não discutiam, exceto um dia.
Eles se foram, e ela chorava calada.
E ele não sabia o quê fazer.
Livro pára na conquista.
Manual pára na conquista.
Filme pára na conquista.
Ninguém ensina como desculpar.
Música inicia na separação.
Ninguém ensina como desculpar.
Não há mais dor que discutir.
Nem há mais dor que flores.
Porque toda flor nasce de mágoa.
Porque toda flor carrega mágoa.
E toda flor murcha com mágoa.

Amor de devorar

Vai ter um dia que o toque, a pele, as mãos e todo o perfume dela vai te embriagar. O olhar dela procura tanto que parece querer roubar sua alma. Você tenta não fugir, mas sequer Medusa tem olhos tão arredios. Poderá segurar forte pelos ombros ou escorrer afeto pelos braços, ou agarrar a cintura e abraçar todas as costas. E a obsessão gostosa de se perder envolvido nos olhos dela. Perde-se fácil também nos lábios molhados, lúdicos. Dá vontade de sorrir quando beijam. Ela já percebe, você também. O impossível nunca foi tão claro, e, ao mesmo tempo, distante. Tudo está entre os dedos anelares entrelaçados. Tudo está nas nucas quentes, ora carícias, ora calafrios. Dos queixos aos pés próximos. É poesia quando ela fecha os olhos e sussurra pertinho tudo aquilo sem dizer uma palavra. É prosa todas suas falas de pouco nexo entre suspiros. É amor de devorar, de tirar o medo. De roubar as tristezas, dores e angústias. É um amor de tamanha verdade que também é amor de beijar o coração.

*Lincoln, que tem a companhia perfeita oficialmente há 4 meses da namorada Késia, acredita?

Varal, da dama de ouro

Talvez seus caminhos estivessem predestinados. Que maneira mais clichê de começar um romance.

E como não odiar os clichês? Além de mal ditos pelo mundo afora, são verdades universais que te esmagam toda vez.
O arrepio sobe das pernas até o peito. Os pêlos dos braços eriçam. De novo, é. Chavão. Todo mundo conhece a sensação. Que mentira. Eles mentem até experimentarem realmente o momento do arrepio.

Do começo ao fim são dois pedaços de mistério. Pedaços de ímã também podem ser. Atraem-se de maneira idêntica. Depois, são desconserto. Quebram as regras que aparentemente ninguém enxerga. Não são iguais. Nem um ao outro, nem a ninguém. Talvez nem tenham nascido. São almas que perambulam fora do paraíso por ainda não terem encontrado seu destino final.

São pés e mãos que trabalham. Mãos que escrevem. Pés que andam. Não param. Não escrevem um para o outro. A escrita é o seu trabalho. As mãos não chegam a calejar. Dos pés, não posso dizer o mesmo. São novas bolhas a cada esquina.
Talvez seus caminhos estivessem predestinados. Que maneira mais clichê de começar um romance, uma paixão, uma historinha de amor. Eu gosto. O público gosta. Atrai mais do que palhaço de rua. Circo de rua. Mágico de rua. Eles nunca souberam fazer mágica. As cartas lhes fogem.
Não escrevem um ao outro. Escrever é o seu trabalho. As mãos, por vezes, calejadas. Os pés não param. A não ser quando as mãos escrevem. Olham um para o outro. E as pupilas, dilatadas, fazem seu trabalho. Elas não calejam. Admiram.
Talvez, lá no fundo, aquele quadro que viram juntos durante a viagem à Salvador tenha sido desenhado por eles mesmos. Eles não sabem. A mata seca, o céu com nuvens. Eu nunca vi beijo tão bom. Ninguém vê beijo bom. No máximo o sentem. Nas línguas, nos lábios. Na boca inteira. Sentem até nas pernas. Eles viram o beijo desenhado no quadro. O original ninguém viu. Mas distribuíram réplicas por aí e eles compraram uma. Menti de novo. Não têm dinheiro. Têm um pouco de talento e um tanto de amor. Uma réplica lhes foi desenhada. Não pagaram um centavo por ela. Pagam por cerveja e chocolate, mas não por desenhos.
Mas voltemos ao romance, à predestinação. Voltemos ao casal.
Ela não usa relógios. Come pães na madrugada e só sai de casa com um anel no dedo do meio.
Ele acorda cedo todos os dias. Anda descalço em casa e tem medo de altura.
Ela é preguiçosa ao amanhecer. Ele, ao anoitecer. Suspiros são recíprocos.
Ela gosta de música tocada ao piano e ouve The Kooks frequentemente. Não sabe sambar. Ele lê livro sobre jornalismo cultural e todo dia se lembra da música do  Legião tocada no filme. Não sabe sambar.
Os dois têm os cabelos cheirando à shampoo, não usam perfume e detestam choro de criança. Secretamente planejam ter um filho, mas não assumem a ninguém.
Ela tem medo de barata e de polvo.  Ele de bicho nenhum, exceto humanos. Ela ensina a ele palavras em inglês. Ele ensina a ela como criticar um jornal. Os dois gostam de sentar no chão. Ela gosta de andar pelada pela casa e que ele deixe a barba crescer. Ele gosta de colocar os pés para cima no sofá e que ela deixe o cabelo solto. Conhecem o significado da palavra “realejo”.  Gostam de pão frito com manteiga.
São sincrônicos. Querem viver até os cem.
Ontem, pegaram chuva juntos. Ela quis pegar chuva. Ele segurou o guarda-chuva. Ela, molhada o abraçou. Ele fez careta. Um beijo.
Eles experimentam a paixão a cada cair de gota.
*Késia, sim, a dama de ouro. Ah, essa é a janela dela.

Aventura com a dama de ouro – Parte 3

– Vai dizer que já não reconhece meu castelo?
– Esses lustres, esses tijolos, esses jardins. Dava pra adivinhar, sim. Para onde, leva esse tapete?
– Espero que seja ao banquete real. Já estou com fome.

A dama de ouro falava sorrindo e saltitava pelo tapete. O vestido longo, as meias longas logo cobriam os pés. Na verdade, parecia que ela flutava seguindo o cheiro da comida. Já estava fatigado de tanto andar, mas precisava acompanhar a moça dos olhos curiosos.

Tentei me segurar em suas mãos, contudo, a fome dela falava mais alto. Demos de cara com uma porta gigantesca. Ela inclinou a cabeça e inclinei a maçaneta. Sala vazia. Porta do lado direito? Sala vazia. E assim brincamos de pique-esconde com o livro rósea por diversas portas.

Nenhuma delas nos mostrava uma mesa farta com peito de peru, batatas fritas, sopas ou pilhas de moedas de chocolate. Sequer mostravam o estimado título que procurávamos. Na última porta adentrar do primeiro andar, encontramos uma parede falsa. É, devia ser lá.

Sombras de um casal em plena paixão e convidados assustados. Até a dama de ouro se fazia convidada desse banquete. As sombras param, as luzes apagam e de novo estamos ouvindo aquela trilha sonora inconfundível. Mas dessa vez, risadas, lágrimas e declarações de amor em grito mesclavam com os sons.

Uma luz piscou em nosso caminho. Segurei a mão tímida da dama e atravessamos a sala escura em direção à ela. Minha parceira nem reclamou muito por mal ter conseguido jantar. Também estava com fome, mas prometi uma porção de salames (a de isca de frango sempre é mais cara, tente comprá-la) após reencontrarmos o livro reluzente.

E no meio da correria, deixo a mochila cair. Antes de qualquer livro escapar , fecho-a  percebo no chão uma carta, ou melhor, um pergaminho. Eu disse um? São dois. Um para mim e outro para a dama de ouro. Ambos caídos da mochila, porém, a dama jamais tinha percebido. Curiosos, cada um abriu sua carta.

Eram de dois anjos da guarda. De nossos anjos da guarda. E os lábios da dama se alargavam, e os olhos lentamente marejavam. Enquanto o anjo Raphael me desejava um nobre coração, o Giovanni falava de sua paixão incondicional pelos jovens, especialmente a dama. Até invejei, porque o Giovanni e a dama fazem aniversário do mesmo dia, e demora quase quatro meses entre uma comemoração minha e a de Raphael. E qual é o aniversário de seu anjo da guarda?

A dama de ouro sentou ao meu lado no tapete vermelho. Começamos a chorar juntos ao ler as cartas, até porque não recebemos muitas cartas quando não são cobranças de luz ou aluguel de cortiço. Cabisbaixa, levantei um pouco seu queixo-de-Travola e me perdi ao sentir o coração acelerado. Abracei-a forte e cerrei os olhos. Não queria perdê-la e não sabia como encontrar seu livro.

Com os olhos abertos, descobri que estávamos na sacada da mais alta torre do castelo da dama de ouro. O sol já debruçara nas montanhas e podíamos ouvir os sons dos passáros – isso sim é música. As flores coloridas e as cores floridas por todo o gramado. Pessoas sorriam sem não apontar para nós. Deu vontade de registrar o momento com uma foto. Ou de dançar com ela. Ou de tocar em sua boca com a maior admiração do mundo.

Queixos coçando, mãos entrelaçadas, nucas arrepiadas e afeto. Uma mochila guardou o último livro, restando uma página a rasgar. E nem sei diferenciar mais sonho de realidade, mas tenho certeza que li ‘esperto amor, com pranto a me cegar / pra cobrir erros quando o amor olhar’.

P.S.: Se todo meu devaneio foi verdade, espero que a dama de ouro também guarde todas essas sensações no coração.

*Lincoln, o apaixonadinho

Aventura com a dama de ouro – Parte 2

Se escalamos as montanhas com as mãos, claro que devemos descê-las com os pés. Mochila aberta nas costas, caminhava rumo abaixo atrás dos quase cinquenta livros perdidos entre as pedras. Uns caíam em buracos falsos, outros se enroscavam nas plantas. E era tão fácil achá-los, já que só precisava ter uma boa audição: as flores gritavam. E gritam alto, imagina? Muitas até se machucaram feio – também, joga a trilogia das Crônicas de Nárnia em sua cabeça para ver se não dói.

A cada vez que descia a montanha, alguns livros decidiam voltar para a mochila. Sim, nesse mundo cor de flor, são os livros que decidem quem deve ler ou para onde ir. Também não conhecia essa versão de livro, mas sempre tem aguns títulos que ganham vida própria por aqui, não? Uns são até em versáteis, lidam com todos os públicos, como ‘Sonhos de Uma Noite de Verão’ e ‘Auto da Barca do Inferno’. Não sei se era o que Gil Vicente esperava, mas muitos adolescentes só tem contato com a obra montando o próprio espetáculo.

Daí, percebemos o quanto as obras são vivas aqui em nosso mundo e o quanto elas já escolhem quem as lerá. Apesar de quando escrevo, sou ciumento e as palavras são mais minhas do que só suas. Tá, você entendeu, tem gente que escreve mais solto, não, Machado? Portanto, não foi muito difícil entender porque no mundo distante os livros literalmente sabem onde saltar. E enquanto convencia as páginas a pularem para dentro da mochila, fazia um ‘positivo’ para a dama de ouro, lá no cume da montanha.

– Quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete, okay?

– Ainda faltam dois livros. Eu sei que faltam, posso té vê-los daqui.

– Impossível, não há mais nenhum, não consigo encontrar. A não ser que estejam fugindo de mim.

Então a dama de ouro apontou em minha direção um dos títulos restantes, bem abaixo dos meus pés. A obra sequer hesitou quando a coloquei para dentro da mochila. Pronto, agora só faltava o último livro. E a capa rósea reluziu lá debaixo, num abismo pouco iluminado, mais parecido com uma fenda no solo. Confesso que não seria a situação mais cômoda da minha vida, contudo, por que obedeci minha curiosidade e fui abrir justamente a mochila?

Já estava perto da fenda, uma luz rósea de novo piscava e piscava. Devia ser um sinal de alerta. Ou brincando de pega-pega. Camuflada na escuridão, não tinha jeito senão adentrar também. Meu olhar foi procurar a dama de ouro, agora um ponto amarelado próximo do céu. Cadê ela? Ah, achei! E estava acenando. Quer dizer, está descendo. Descendo? Como? Um tobogã de flores? E elas reclamam ou vai dizer que não consegue escutar os gritos dela enquanto carregam a dama?

O tobogã deslizava de um lado ao outro, como um zigue-zague pela montanha. Comecei a gritar, erguer as mãos amedrontado para que ela não se acidentasse. Não poderia subir, já que estava de pé e, portanto, deveria descer a montanha. Se ousasse ajudá-la, ia cair no abismo. Foram uns poucos segundos de pânico, mas meu coração batia como se eu tivesse vivido quarenta minutos. Tudo é muito acelerado quando estou próximo da dama de ouro ou a vejo em apuros. Sensação estranha, não?

Aposto que a dama de ouro também não confiava se chegaria tão perto de mim mais uma vez. E os cabelos e as fitas de seu vestido voavam na direção oposta de seu sorriso. De pernas cruzadas no tobogã, fechava os olhos e levantava os braços como se fosse a maior diversão de sua vida estar perdida na montanha. Sorte que as flores eram sabidas do caminho. Não tão sabidas, já que elas lançaram a dama de ouro em cima de mim. Caímos os dois no abismo.

Meu joelho não estava ralado, só que tive uma vontade forte de chorar ao ver a dama de ouro desmaiada. Fui até ela, toquei em seu queixo de Travolta, mas não acordava. Agarrei em seu pulso, massageei o peito, e a dama sequer esboçava alguma reação. Uma lágrima já saía do meu rosto quando escutei um ranger de dentes. Rangeu os dentes mais uma vez e, de repente, bocejou. Estavam abertos aqueles lindos olhos de me fazer aninhá-la em meus braços.

Sem nenhum arranhão também, ela tinha me explicado que tinha passado outra madrugada sem sonhos. Por isso que teve vontade de me convidar a brincar em seu mundo cor de flor. Trocamos sorrisos singelos e ela se lembrou que deveríamos procurar o último livro. Não tínhamos ideia de como achá-lo e, caminhando de mãos dadas por aí, até onde a luz não consegue invadir. No meio do cenário sombrio, tropecei em uma pedra. Ouvimos um movimento da obra fugitiva e corremos atrás do som de seu, hã, passo.

Como um casal de cegos, percorremos quilômetros tentando segurar o som. E ele, leve e impulsivo, guiava-nos até outros sons. Parecia uma orquestra. É, uma orquestra, só que sem música. Uma voz esquisita, ora grave e fina, um barulho de percussão e outros de pedras e ossos. Ou algum som que imitava pedras e ossos. Cada um em seu timbre e em seu tempo. Tentava olhar para os lados, contudo, tudo era escuro e só conseguia apreciar aquela música que não chamo de música. Senti que a dama de ouro mal mexia o corpo também. Então não deve ser uma música. Ou é uma canção muito ruim.

– Você viu um livro por aí? – E a orquestra continuava a tocar sua música sem música.

– Tem certeza que você não viu um livro por aí? – Nenhum som fazia questão de me responder.

– Eu sei que vocês estão com um livro por aí!

A orquestra aumentou o barulho e, bem na minha frente, reluz uma capa rósea: ‘Poemas de Amor de Shakespeare’. A dama de ouro exclamou que era esse o livro que faltava. E me imaginei se estava em um sonho, porque é impossível que o autor de ‘Macbeth’ e ‘Rei Lear’ tenha seu lado romântico. Mas a dama de ouro estava tão empolgada nessa caça às obras, que era impossível de recusar seu pedido.Quando conhecer a dama de ouro, verá o quanto ela é encantadoramente divertida.

E a luz começou a fugir, e nós bem atrás, bem atrás mesmo. Até que vimos uma estreita brecha, uma brecha conveniente, uma larga brecha, uma baita brecha e saímos do abismo. Era um corredor imenso com dezenas de portas e lustres e tapete vermelho. Mal reparamos que a orquestra tinha ficado para centenas de metros de distância. Na verdade, o que nos preocupava ainda era encontrar o tal livro rósea de poemas. Para ser sincero, o que mais me preocupava era saber em que lugar estávamos.

*Lincoln, o ouvinte

Aventura com a dama de ouro – Parte 1

Minha casa se esvaziou noutro dia e certa parte de meus pés também. Quando seus entes queridos tomam distância, você também deve se sentir meio solto, não? Talvez não ande de samba-calção por aí, mas é como se sua casa perdesse gravitação. Estava meio insatisfeito com isso, ainda mais quando vi a janela do quarto aberta.

Longe de qualquer frio, mas não me lembrava de ter aberta a janela nas últimas horas. Nem precisei muito caminhar em sua direção, já que isolado entre o sofá e o abajur, era facilmente levado pelos ares. Flutuando, segurei nas dobradiças, pronto para fechá-las. Mas aquele vento forte de noroeste me puxou pelos pés.

Tentava me segurar nas dobradiças dessa vez. Não estava muito interessado em cair do nono andar do prédio. E quando me deparei com o longínquo andar térreo abaixo de mim, tossi duas vezes. Assustado, nada prendia meus pés num breu que me envolvi pra fora da janela. Consegui me erguer para dentro do apê, mas uma voz pedia socorro do lado de fora.

Por que tenho essa mania de querer ajudar as pessoas ainda? Caí em desespero pela janela. Ninguém me guiava na escalada ao contrário rumo a uma viagem inusitada. Comi terra e lá estava sorrindo a dama de ouro. Pensei que talvez fosse novamente um sonho bom e ela não estivesse ali diante dos meus olhos.

– Não pensava que te reencontraria tão rápido. Estava aqui há muito tempo?
– Em meu mundo relógios não funcionam muito bem – dizia a dama guardando o livro no terceiro bolso de seu vestido.

Sinto que esbocei um largo sorriso quando a vi. Ela me ofereceu uma mochila e junto começamos a escalar em seu reino cor de flor. Lá não é bem diferente do que o mundo daqui, só que tem demasiadamente flores. Em diferentes cantos e em diferentes tamanhos. Flores de muitas cores. E cores de muitas flores.

E tem montanhas, rios que cortam jardins e até aquele cavalo que passou por uma cirurgia para arrumar sua deformidade. Sim, percebi então que eu não estava num sonho. A dama de ouro me ofereceu uma mochila e tivemos que subir uma montanha muito íngreme. Não entendi o porquê da mochila, enfim…

– Se lembra do nosso plano de subirmos essa montanha quando viesse para cá?

O sorriso dela ao falar logo me encantou. É que a dama de ouro fala sorrindo. Ela ficou um pouco vermelha, toquei em seu queixo de Travolta que tanto me fascina. Precisava segurar no queixo dela. Novamente ela vivia a me levar pra mais perto de si com aqueles lindos olhos.

Inclinei um pouco meu rosto e fiquei a admirando. Ela ficou sem jeito e me intimidei também. Então a dama começou a escalar. Subimos pouco a pouco. Fomos muito cuidadosos porque ela não queria perder flor alguma. Mas ela deu ‘strike’ em certas horas, e eu também. Ela estava na minha frente na escalada, queria ajudá-la.

Mas a dama de ouro sempre tem charme, até para escalar, porque ela é independente. Até pra escalar, nem precisou me deixar claro que dava conta de subir toda a montanha sozinha. Mas apesar dela subir sozinha a montanha, sabia que ela gostava de subir até lá com minha companhia. Porque é impossível que só eu gostasse da companhia da dama de ouro.

E quando conseguimos, enfim, chegar ao topo da montanha, ela deitou preguiçosamente no gramado gelado. A cabeça dela encostava numa linda árvore de ‘capacetes doces’, pois eram doces do tamanho de um capacete. Se você não acreditar, tudo bem, porque estamos no mundo da cor de flor e posso falar o que bem entender, tá? Voltando a história, copiei a dama, porque também estava cansado. Na verdade, estava pensativo porque queria saber o que tinha dentro da mochila que ela me ofereceu.

Ela sentou-se no chão verde, sorriu pra me fazer suspirar. Tenho certeza que ela sabia que os sorrisos dela me provocavam. Daí, tentei me focar no mistério da mochila. Mas a dama me ofereceu um doce exótico de seu mundo. Não era feito de flor, mas de puro açúcar e nem consegui mastigar.

Então comíamos os doces exóticos enquanto víamos centenas e dezenas de livros da mochila aberta. Ela me contava pouco a pouco sobre cada um que ela já tinha lido. Eu ria alto de cada título estranho dos que não li. Ou vai dizer para mim que nunca viu também um título estranho nas livrarias de seu bairro?

Só que sem querer derrubei uns quinze ou trinta, quase cinqüenta livros montanha abaixo. Caíram os doces da mão da minha companheira. Uma lágrima escorreu da dama de ouro e meu coração se apertou, porque não queria magoá-la. Assumi os compromissos de resgatar os livros dela montanha abaixo. E eis o início de nossa aventura.

*Lincoln, o montanheiro