Velório do passado

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*Lincoln, bem distante de cenas antigas.

Medo de perder o medo

Balançam os laços dos babados. É pueril, inocente e astuta. Os cachos também envolvidos por fitas vermelhas. A pinta por cima da boca carnuda serve para que nem eu – sequer alguém desta vila – possa resistir às suas palavras. Sabe como alucinar meus pensamentos, invadir meus sonhos e fazer de mim seu exclusivo serviçal. No fundo, não gostaria de respeitá-la ou de temê-la, porém, mesmo que ela me destrate, sempre estou fiel aos olhos dela. Nunca corro para longe.

Dessa vez, de costas, ela só inclina o pescoço para que sinta seu aroma. O perfume que exala me enaltece, me enfurece, ao mesmo tempo que me assombra. Seduz-me fácil essa mulher de juras que não compartilha com outrém. Sua cintura fina me escapa em segundos. Fitas coloridas caem pelo chão. Longas mechas vão contra a direção da porta de nosso tenro lar. Por que seria abandonado justo pela moça que me faz questão de enlouquecer? Pego um revólver em cima da mesa, quero trazê-la para mim.

Faço isso porque é necessário, o perigo não é o trajeto em busca dela, mas ela própria. Salta galhos, pisa em pequenas poças. A saia respingada vai se desfazendo aos poucos pelo matagal. Minhas mãos anseiam segurá-la pelos ombros. Melhor, pela nuca, para que nunca mais ouse fugir de mim. Também perco uma parte de mim nesta jornada. Já minhas botas caíram manchadas de lama pelo trajeto. Minha camisa de linho se encontra desfiada. Graças ao suspensório, um pouco dela me resta. A calça rasgada, tingida de barro, é a única peça que me protege do frio de treze graus.

Arrá, encurralada à margem do rio. Ela não sabe nadar. Na verdade, a presa mal sabe das coisas. Contudo, sou eu a vítima. Ou era a vítima, já que tenho a única chance de mirar seu rosto com a arma. Meu dedo coça o gatilho, e os lábios dela balbuciam breves palavras. Ela é minha posse, ela é minha, como pôde querer fugir de mim? Como pôde me deixar sujo, ímpio, neste estado tão degradante? Lágrimas do céu começam a cair como um cenário de quaisquer filmes de suspense. O terror se fez encosto. Ela clama piedade, repete todas as declarações para me fazer esquecer seus males e sua nova fuga. Ela não tem sentimentos, afinal, deve representar sentimentos.

Abaixo a arma. De toda forma, abaixaria a arma. Até porque a atração com meu medo não pode morrer.

*Lincoln, o medroso

Súplica a Ninguém

‘Por favor, me arranque desse vazio, desse fundo que me faz tremer.

Todas as fotos sorriem nessa noite chuvosa que me impede de tudo.

Será que posso confiar em você? Que posso confiar em mim?

Sinto tanto a falta de algo que nunca terei. A dor me corrói.

Espero que você nunca passe por isso…

Por que nem sei se vou conseguir passar também.

Não, não mereço sentir tanta dor. Salve-me de mim.’

*Lincoln, o orador